I Jo. 5.7 “Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um.” Este verso, conhecido com a Comma Johanneum (a cláusula Joanina), também conhecido como “As Três Testemunhas Celestiais”, seria o único que “apoiaria” explicitamente a doutrina da trindade. A bíblia Almeida Corrigida contém o texto, já a Almeida Atualizada não o contém, e isto tornou-se objeto de discussão entre os defensores do Textus Receptus (TR), base para a Corrigida, e os defensores do Texto Crítico (TC), base da Atualizada. A evidência textual aponta para a rejeição da passagem “no céu, o Pai, a palavra, e o Espírito Santo: e estes três são um” por não constar nos manuscritos gregos mais antigos. Mas, independente do texto crítico cunhado por Westcott e Hort, com base nos manuscritos Aleph (Sinaiticus) e B (Vaticanus), que muitos consideram corrompidos (e não se pretende aqui defender o criticismo, ainda que haja o princípio da probabilidade intrínseca), omitir a Comma Joanina, devemos nos ater a história dessa possível inserção e concluir, baseado nos fatos constatados, se realmente é uma inserção ou não! Para isso vale a pena ler a declaração do Dr. Norman Wilbur Pickering que embora seja um defensor da trindade e do TR1 atesta “…99% dos MSS gregos não trazem as ‘três testemunhas celestiais‘”. Apenas 8 (oito) manuscritos gregos, em um universo de aproximadamente 6.000, segundo informa o aparato crítico do Novo Testamento Grego da United Bible Societies e outras fontes secundárias, contêm a Comma. São eles: 61 (Códice Montofrianus) do século XVI; 88 (uma variante do Códice Regius de Nápolis [XII]) do século XIV; 429 (Mss em Wolfertüttel) do século XIV; 629 (Mss no Vaticano) do século XIV/XV; 636 (Mss em Nápoles) do século XV; 918 (Mss em Escorial, Espanha) do século XVI; 2473 do século XVII e 2318 (Bucareste, Romênia) do século XVIII. Vale a pena ressaltar que em apenas quatro dos oito o texto não apace como nota marginal, ou seja, se excluirmos os manuscritos em que a Comma não aparece no meio do texto bíblico, então, o número cai mais ainda, e todos são posteriores ao seculo XI, ou seja, no mínimo 1.000 (mil) anos depois de João haver escrito a epístola original; e o último deles é extremamente recente, do século dezoito. Há quem ignore o fato de que a evidência da escassez e recenticidade dos manuscritos gregos testemunham fortemente em desfavor da autenticidade do trecho, e apelam para Thacius Cecilianus Cyprianus, ou simplesmente Cipriano, nomeado bispo de Cartago em 248 d.C. Autor de “De Catholicae Ecclesiase Unitate” (A Unidade da Igreja Católica), e que tem como um de suas máximas a expressão: “Você não pode ter Deus para seu pai, se não tem a Igreja como sua mãe”. O que algumas pessoas não sabem é que Cipriano foi seguidor apaixonado das ideias de Tertuliano, ainda que tenha evitado se referir ao nome de seu “mestre” por conta da saída dele da igreja “oficial” para abraçar o Montanismo2, e por ele mesmo, Tertuliano, conta-se, haver depois saído de lá e fundado um movimento religioso próprio, que ficou conhecido como Tertulianismo. Jerônimo atesta essa filiação entre Cipriano e as obras de Tertuliano em seu livro De Viris Illustribus (Sobre Homens Ilustres)3. Informa que esse o classificava de mestre e estava familiarizado com sua obra. Como se sabe Tertuliano foi o primeiro a usar o termo “trindade”, e seus escritos oscilavam entre o subordinacionismo característico de todos os escritores cristãos até o segundo século, e a unidade da substância, que embora tendo conotação diferente daquele assumido em Niceia, começava a surgir enquanto ensinamento teológico ainda que concebida em graus de existências por esse teólogo, por conta dessa variação a teologia dele é considerada confusa ou ambígua. Embora se diga que Cipriano tenha falado, em sua época, a frase que compõe a Comma, não se pode afirmar que ele o tenha feito por conhecimento de algum manuscrito bíblico em grego, pois nem Tertuliano, de quem foi seguidor, que falava tanto latim quanto grego citou ou fez menção a frase, nem mesmo em sua obra contra Praxéas onde apresenta o dogma trinitário. Também Novaciano que escreveu um tratado sobre a trindade e foi contemporâneo de Cipriano, e igualmente leitor de Tertuliano, não a conhecia. A inexistência de manuscritos gregos que contenham essa construção no período em que viveu o Bispo Cipriano atesta que ele não o fez baseado em algum texto inspirado. Na verdade há quem afirme que Cipriano é o autor da frase por influência das ideias de Tertuliano, cunhada em uma de suas homílias e mais tarde usada por um copista como nota marginal nos manuscritos latinos posteriores e depois inserido no corpo do texto joanino. Isto parece estar ainda mais evidenciado quando se descobre que nem mesmo os manuscritos da Vulgada Latina anteriores ao ano 800 contêm a Comma. Vale lembrar que Cipriano era Bispo latino, e pelo que se vê ele não leu nem em manuscritos gregos, nem em manuscritos latinos aquilo que se atribui a João em sua primeira epístola. Outra suposta citação das “três testemunhas celestiais” é vista em Cassidoro mais de 200 anos depois de Cipriano. Vale lembrar que enquanto isso os chamados “pais” da igreja estavam debatendo a questão cristológica de forma intensa, e o fizeram sem qualquer menção ao trecho referenciado como que atestando sua inexistência. Assim, do ponto de vista historiológico a Comma Joanina partiu de uma nota marginal em um manuscrito latino, vindo a fazer parte em manuscritos subsequentes da Vulgata, já tardiamente passando, na sequência, para um texto grego posterior. É de se destacar que ela também não consta em versões antigas do Novo Testamento como a siríaca, a armênia, copta, árabe, etíope e outras. A Bíblia de Jerusalém, que é uma produção conjunta de ramos trinitários do cristianismo (catolicismo e protestantismo) teria valorizado sobremaneira o trecho se ele fosse, de fato, verdadeiro, mas, ao contrário diz em nota de rodapé acerca desse verso que “O texto dos Vv. 7-8 está acrescido na Vulg. de um inciso […] ausente nos antigos mss. gregos, nas antigas versões e nos melhores mss. da Vulg., o qual parece ser uma glosa marginal introduzida posteriormente no texto”
O próprio Textus Receptus elaborado por Erasmo de Roterdã, a partir dos textos gregos disponíveis, em sua primeira edição de 1516 não traz, também, a Comma Joanina, nem mesmo na segunda edição que começou a circular em 1519, e somente foi incluída na edição de 1522, por pressão de religiosos da época, que diga-se de passagem já viviam em um mundo completamente romanizado e trinitário. E, embora o tenha feito, os registros informam que Erasmo o fez com ressalvas e sem confiar na autenticidade do único manuscrito grego que lhe foi apresentado constando a Comma, o manuscrito catalogado sob número 61. A própria datação do manuscrito apresentado a Erasmo mostra que ele é contemporâneo do erudito, ou seja, sem valor histórico para finalidade de inclusão na obra de Erasmo. Portanto, percebemos que se o Texto Crítico fosse elaborado na época das primeira e segunda edições do Textus Receptus, teriam ambos, de forma idêntica, o texto de I João 5.7; sem as “três testemunhas celestiais”. De modo que não é o TC que determina o uso ou não da Comma Joanina, mas os fatos históricos que testemunham em seu desfavor. Então, se o primeiro manuscrito grego que se tem notícias que o contém data de mais de 1000 (mil) anos depois de Cristo; o primeiro manuscrito latino que o contém data do ano 800 (oitocentos) depois de Cristo; se as antigas versões do Novo Testamento para outras línguas não o contém e esses trecho não aparece nas discussões teológicas que envolveram o tema durante séculos, principalmente dos primeiros séculos, como pode ser escrito original de João?
Alguns alegam que se retirada as “três testemunhas celestiais” de I Jo. 5.7, produz-se um erro gramatical, mas isso (o erro gramatical) não é incomum nos textos gregos de João, nem nos textos bíblicos de um modo geral, até porque os escritores tinham graus de conhecimento diferentes da língua o que torna a possibilidade de erro real, além disso alguns deles eram servidos por amanuenses. Comprovando a realidade da imperfeição gramatical em determinadas passagens bíblicas o Dr. Russel Champlin registra acerca do Apocalipse: “O grego ali usado é próprio de um autor que falava o aramaico (sic), e que adquiriu o grego como segundo idioma. Há muitos erros gramaticais no original”. A cerca do evangelho de João o mesmo autor diz: “alguém submeteu o livro a uma revisão bem completa da linguagem”4. A esse título, temos coisas incomuns também em outros lugares do N.T como, por exemplo, três substantivos femininos reunidas num plural neutro em I Co. 13.13, ou em Ap. 1.13 o uso de “μαστός” (mama ou peito, donde temos mastologia) aplicado a Jesus. A mesma palavra é usada em Lc. 11.27 “Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que mamaste.”; ao invés de κολπός (kolpos), seio, peitoral, como em Jo. 13.23. Há ainda casos em que um substantivo feminino foi masculinizado, só para citar alguns exemplos. Assim, também isso não é argumento em favor da Comma Joanina.
1Pickering, Dr. Norman Wilbur in Qual o Texto Original do Novo Testamento
2Montanismo – nome dado ao movimento religioso fundado por Montano. Caracterizava-se pelo ascetismo e a crença na atualidade dos dons Espirituais e adotava uma linha apocalíptica.
3Esta obra elencou 135 homens ilustres do cristianismo e tinha como objetivo mostrar que nesse meio de fé haviam também pessoas instruídas, pois uma antiga acusação que incomodava alguns cristãos era que todos eram ignorantes.
4Apud Chaplin, R.N. In Enciclopédia da Bíblia, Teologia e Filosofia. Ed. Candeia, São Paulo – 1995, pág. 544.