A redação de At. 20.28 diz: “Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue.”(ACF)
O que está em causa aqui é o final do verso, cuja leitura dá a entender que Deus tem (ou teve) sangue , e isso só poderia ser cogitado, se aplicado a Cristo, dizendo que a humanidade de Jesus é a própria Deidade.
Assim, aqui existem, pelo menos, duas questões:
1) A humanidade de Jesus é também deidade? Ou seja, Jesus é de única natureza, de tal modo que o sangue não é do homem Jesus, mas de Deus? Será que a deidade se transformou em carne também e vice-versa?
2) A expressão “seu próprio sangue” pode significar outra coisa que não uma relação de identidade direta?
A primeira é menos provável se tomarmos a Bíblia em seu sentido amplo, pois além de descaracterizar quem é Deus, anularia o sacrifício de Cristo: um humano resgatando a humanidade (o segundo Adão), assim como um humano fez cair a humanidade (o primeiro Adão). Rm. 5.14 mostra que foi o homem Jesus, enviado pela graça de Deus que verteu o seu sangue.
Em favor da segunda opção temos o resto da Bíblia, que nos informa que Deus é Espírito (Jo. 4.24) e que um espírito não tem carne e ossos, consequentemente não tem sangue (Lc. 24.39)
Assim, sangue é algo físico, inerente à matéria. Nesse sentido, o sangue de Deus, não pode significar que Deus tem sangue, mas que o sangue pertence a ele.
Além do mais, se o sangue em At. 20.28 é o sangue das “veias” de Deus, isto significaria inapelavelmente que Deus morreu, já que foi esse sangue que teria sido vertido na cruz, mas as Escrituras dizem: I Tm. 1.17 “Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível, ao único Deus, seja honra e glória para todo o sempre. Amém.” O IMORTAL não morre. Se um dia o IMORTAL morreu não era, então, de fato, IMORTAL, pois pôde morrer, provando sua mortalidade. Deus não poderia ter dado “seu próprio sangue” e não ter sido considerado MORTO. Mas, isso tornaria falso I Tm. 1.17.
Mas, será que existe apoio linguístico para a acepção de que o sangue pertence a Deus, sem ser o sangue do próprio Deus em si? Sim, existe! A expressão “διὰ τοῦ ἰδίου αἵματος” pode ser entendida de duas formas: a)atributivamente, que é como a maioria dos trinitários entendem; ou b) possessivamente, significando que o sangue é de alguém que pertence a Deus. Isso tem apoio do resto da Bíblia que apresenta Deus e Jesus como seres distintos, não apenas pessoas distintas!
As escrituras dizem: “Corpo me preparas-te” (Hb. 10.5). A epístola aos hebreus deixa claro que Deus preparou um corpo não para si próprio, mas para outro. O verso 7 dessa mesma epístola mostra, mais uma vez de forma clara, que quem adquiriu o corpo não foi Deus, mas alguém disposto a fazer a vontade de Deus.
O contexto onde esse verso de Atos está inserido fala, no mesmo capítulo, de Deus e de Jesus em distinção várias vezes: At. 20.21,24,27. O fluxo do texto não leva os leitores a acreditarem que Jesus é o mesmo Deus de quem aparece em distinção recorrentemente.
Apoio de trinitaristas! O entendimento de não tratar-se do “sangue de Deus” não é exclusividade dos unitarianos. É uma constatação lógica do texto bíblico. Basta lembrarmos que a palavra “Deus” ocorre certa de 1.340 vezes. Note 1.340 vezes. Desta milhar e algumas centenas apenas raras, realmente raras vezes o termo é aplicado, em teoria, a Jesus (talvez umas 6). E todas essas escassas vezes o texto não está livre de apuração. E At. 20.28 é um caso típico!
O PhD Dr. Murray J. Harris que é professor emérito de exegese do Novo Testamento e teologia na Trinity Evangelical Divinity School, em Deerfield, Illinois, diz em seu livro “Jesus como Deus – O uso Theos no Novo Testamento, em referência a Jesus” (Grand Rapids: Baker Book House, 1992), 141: “nesta construção de ίδιος é mais provável que θεός é Deus, o Pai e o objeto não expresso de περιεποιήσατο é Jesus”. Ou seja, mesmo os que defendem Jesus como Deus reconhecem que o texto não pode se referir ao sangue do Deus que é Espírito, mas pertencer a ele, através do Filho que é dEle.
Há uma variante grega, usada na USB, que traz a parte final do verso assim: “διὰ τοῦ αἵματος τοῦ ἰδίου”. Literalmente se traduz: “com o sangue de seu próprio”. Há uma expressão similar em Rm. 8.32 onde encontramos “τοῦ ἰδίου υἱοῦ” (seu próprio Filho). Já vimos que a outra variante pode ser usada tanto atributivamente como possessivamente. Então se houvesse apenas ela a possessividade já era constatável. Mas, esta mostra diretamente a possessividade, o que permite concluir que o texto fala do sangue do Filho. Esse uso não é estranho. Matzger em “Um Comentário Textual em grego do Novo Testamento”, 2 ª ed. (Stuttgart: Sociedades Bíblicas Unidas, 1971.), 426, diz: “Este uso absoluto de ‘idios’ é encontrada em papiros gregos como um termo carinhoso referindo-se a parentes próximos”.
A Bíblia de Jerusalém, que é uma bíblia produzida por católicos e protestantes, assim verteu o verso: “nele o Espírito Santo vos constituiu guardiães, para apascentardes a Igreja de Deus, que ele adquiriu para sipelo sangue do seu próprio Filho”. Assim também entenderam os tradutores católicos e trinitários da versão da CNBB: “o Espírito Santo os constituiu como guardiães, para apascentarem a Igreja de Deus, que ele adquiriu para si com o sangue do seu próprio Filho”. Outra versão protestante, logo, feita por trinitarianos, NTLH apresenta o verbo com a redação: “o Espírito Santo entregou aos seus cuidados, como pastores da Igreja de Deus, que ele comprou por meio do sangue do seu próprio Filho.”.
Nota-se com isso que, seja católico, seja protestante ou, ainda, os dois juntos, os tradutores não tem dificuldades em perceber que ali não se trata do sangue de Deus em si.
Logo, o entendimento unitariano que vê em At. 20.28 a Bíblia falar do sangue que pertence a Deus porque o Filho pertence a ele, tem apoio não somente do ponto de vista bíblico (Rm 8:32 “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará também com ele todas as coisas?“), mas linguístico e exegético, refletido em reconhecidas traduções bíblicas e renomados exegetas trinitários. Claro, só a Bíblia já bastaria, mas essas informações extras são só para mostrar que esse entendimento não é exclusivdo do unitarianismo.
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