Sobre Jo. 10.30 “Eu e o Pai somos um”. Agostinho chega a afirmar que Jesus queria dizer “‘O que ele é, eu sou’, segundo a essência e não segundo a relação”1, esse entendimento, porém, não parece ser o que a Bíblia apresenta, e ele disse isso porque o verso remeteria em uma leitura direta às hipóstases (a relação de pai e filho) e não a essência, porém Agostinho não nos traz nenhum versículo bíblico para tentar provar essa suposta verdade, simplesmente confia na sua autoridade de filósofo e clérigo católico, doutor da igreja2, e com essa “autoridade” afirmava: “Ego vero Evangelio non crederem, nisi me catholicae Ecclesiae commoveret auctoritas – Eu não creria no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja Católica”. Mas, precisamos ler esse versículo de João considerando o conjunto das Escrituras e, nesse sentido, quando olhamos para a oração sacerdotal, esta sim está na Bíblia, registrada por João mesmo, encontramos as palavras do Senhor nos seguintes termos: “para que todos sejam um; assim como tu, ó Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles sejam um em nós” (Jo. 17:21). Aqui Nosso Senhor mostra que suas palavras não intentaram igualdade de “essência” ou de pessoas (hipóstases) por incluir Ele e o Pai juntamente com os discípulos em uma mesma unidade; até porque essa questão de “essência” ou “substância”, relacionada a Divindade, é produto teológico muito posterior ao período bíblico. Vale lembrar, ainda, que aqui é usado ἕν “hen” (“um” neutro em grego) em ambas as passagens, diferente do uso que a Septuaginta fez do “um” no Shemá3, quando usou εἷς “heis” (um masculino em grego). Se estivesse na mente de Jesus dizer que era igual na Deidade, ou seja, um Deus consubstancial, então, a palavra Deus é masculina singular, ou se mesmo na remotíssima hipótese de ele haver pensado na palavra “homoousios”4 (mesma substância) esta é, também, masculino singular, desse modo, pelo menos εἷς “heis” era de se esperar, mas isso não aconteceu. Se fosse “ἴσος” (isos) a palavra usada a questão estaria liquidade em benefício dos trinitários, mas isso também não aconteceu. É interessante observar que em Jo. 10.29, Jesus diz: “Meu Pai, que mas deu, é maior do que todos; …”, a conclusão descontextualizada é que se o Pai é Maior que todos, por ser Deus, e Jesus diz que “Eu e o Pai somos um”, então, Jesus seria Deus da mesma forma que o Pai é, mas se é desse jeito, então, somos todos Deus, pois em Jo. 17.21, já lido, Deus continua sendo o que é, Jesus também, e nos de igual modo continuamos sendo o que somos, mas o Nosso Senhor diz, com relação a ser UM com seus discípulos: “ASSIM COMO tu ó Pai, és em mim, e eu em ti”, parafraseando para o sentido correto teríamos: “Embora eu seja um contigo mesmo não sendo igual a tu, que eles seja um conosco, mesmo não sendo igual a nós”. Acerca dEle mesmo em relação ao Pai, levando em conta a questão de grau de superioridade, Jesus disse em Jo. 14.28 : “… o Pai é maior do que eu.”5 Note bem este último verso! Jesus está falando na condição de Filho, por isso diz “o Pai”, Ele não está falando de sua condição de homem no relacionamento com Deus, mas Filho para com o Pai, e como Filho, Ele diz que o Pai é maior de que Ele, anulando a pretensão agostiniana do requerimento de igualdade entre o Pai e o Filho, quando o teólogo tentou desfazer a afirmação de Jesus “… o Pai é maior do que eu” alegando que isso é correto apenas em certo sentido, e afirma que por esse ângulo Jesus “É inferior a sim mesmo”6, porque se esvaziou a si conforme está escrito em Fl. 2.6, mas o católico parece ignorar o fato de que Jesus não é somente Filho de Deus na terra, quando encarnado, mas já o era no céu antes do esvaziamento, de modo que se ele era filho antes, é agora, e, será eternamente, então, ele falou em sua condição de Filho. Dessa forma, ainda que fosse verdadeira a hipotética ideia (digo hipotética porque a expressão não está na Bíblia, é uma expressão criada) de um “Deus Filho”, ainda assim Ele informa ser menor que o Deus Pai, mostrando, por via de consequência, não poder ser igual a Deus.
Há quem argumento que não haveria sentido Jesus dizer que o Pai era maior do que ele se não fosse apenas em função, pois naturalmente todos são menor que o Pai, de modo que Jesus não cairia em uma redundância óbvia dessas, mas esse raciocínio é negado por Jesus mesmo ao usar outra expressão de mesmo peso incluindo toda a humanidade: “porque meu Pai é maior do que eu” (Jo. 14.28), ou seja, por mais que seja óbvio, era prazer do Filho mostrar que seu Pai era maior. Não somente maior do que todos, mas maior do que o Filho.
Inexplicavelmente ignorando o argumento acima, muitos dizem que o sentido de Jo. 10.30 foi o de realmente se igualar a Deus, o Pai, porque nos versos seguinte se vê uma tentativa de apedrejamento de Jesus por parte dos judeus. Mas, na sequencia vemos que Ele perguntou aos seus opositores e obteve uma resposta: Jo. 10:32 “Disse-lhes Jesus: Muitas obras boas da parte de meu Pai vos tenho mostrado; por qual destas obras ides apedrejar-me? 33 Responderam-lhe os judeus: Não é por nenhuma obra boa que vamos apedrejar-te, mas por blasfêmia; porque, sendo tu homem, te fazes Deus.” Por esse verso ser seguinte a expressão “Eu e o Pai somos um”, a interpretação imediatista é que a blasfêmia, assim entendida pelos judeus, seria por essa afirmação, mas a informação textual não para no verso 32, e vale a pena lermos o restante: “34 Tornou-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Vós sois deuses? 35 Se a lei chamou deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi dirigida (e a Escritura não pode ser anulada), 36 àquele a quem o Pai santificou, e enviou ao mundo, dizeis vós: Blasfemas; porque eu disse: Sou Filho de Deus?”. O curioso do estudo dessa passagem bíblica é que todos reconhecem a visão errada dos judeus, principalmente a má interpretação que os fariseus sempre fizeram das palavras de Jesus em todo Novo Testamento, e que estes constantemente o acusavam enganosamente, mas surpreendentemente os que defendem a co-igualdade entre Cristo e o seu Deus acham, agora, que os fariseus haviam entendido acertadamente(?), de forma indubitável, que Jesus teria afirmado ser o próprio Deus ao invés de ser mais uma das falsas afirmações farisaicas acerca de Jesus, mas o Mestre mostra o engano de ambos ao continuar o diálogo e explicita que não haveria motivo para espanto. O primeiro ponto a observar é que nem os judeus e nem Jesus se reportaram, na sequencia, a afirmação “Eu e o Pai somos um”. Está claro no fechamento das palavras de Jesus: “dizeis vós: Blasfemas; porque eu disse: Sou Filho de Deus?”, que a causa foi a afirmação ocorrida quatro vezes desde o verso 25 do capítulo, que Deus era seu Pai. Jesus lembra aos judeus que as Escrituras já haviam chamado homens de “deuses” e ela, a Escritura, não pode ser anulada. Ele poderia ter falado também dos falsos deuses que são chamado de “deus”, mas nesse caso, como não se tratava do uso legítimo do termo “deus”, pois são falsas divindades, Jesus não citou, mas no caso dos juízes foi o próprio Yahweh, através dos escritores sacros, quem os chama assim. Jesus, porém, sequer reivindicou igualdade de situação com eles e até que poderia, mas, pelo contrário, justificou que não estava se auto proclamado “Deus”, e nem o poderia fazer, pois no verso 36, do mesmo contexto, vemos sua afirmação: “àquele a quem o Pai santificou, e enviou ao mundo”. Ora Ele não poderia passar pelo processo de santificação (separação) antes de vir ao mundo e ser Deus ao mesmo tempo. Ele apenas nos disse ser Filho de Deus. Perceba dessa resposta de Jesus que os fariseus não levaram a cabo a intenção de apedrejar o Mestre pela clareza da explicação; no entanto, deveriam ter feito se o entendimento deles estivesse correto, mas mudaram, então, para tentativa de aprisionamento, Jo. 10.39. É como se Ele estivesse dizendo: “eu não estou falando que sou Deus, estou dizendo que sou Filho. Na Bíblia há a afirmação de pessoas com a designação de ‘deus’, como os juízes de Israel, e vocês consideram normal, então, não me estranhem.” Há que se observar, também, que chamar Deus de Pai não era uma exclusividade de Jesus, os próprios fariseus que tentaram condená-lo por isso, também chamavam Deus de Pai, Jo. 8.41 “… Nós não somos nascidos de prostituição; temos um Pai, que é Deus.”, ora se eles próprio chamavam Deus de Pai, porque Jesus, com muito mais propriedade, por ser o Messias prometido, não poderia fazê-lo? Fica claro o tamanho da deturpação que os fariseus fizeram das palavras de Jesus com o objetivo de o incriminar7. O lamentável é que hoje se usam aquelas palavras do Nosso Divino Mestre em conjunto com a dos fariseus para O deificar, mesmo Ele tendo explicado, naquela época que esse conceito é errado. E isto se vê provado não somente pelo já exposto, mas também pelo contido em Fp. 2.6, pois se Ele, na condição divina que tinha antes de encarnar, não quis elevar-se ao status de igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo e assumiu a forma de servo, como iria querer, nessa forma de servo, anular a afirmação e o propósito do esvaziamento de Fp. 2.6 e querer fazer-se, agora, diante de todos, igual a Deus? Jesus incansavelmente rebatia quem afirmava que ele estava se fazendo Deus. Vejamos outro exemplo; em Jo. 5.18 “…mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.”, ele logo no verso seguinte, no v.19, traz um esclarecimento, como resposta, que anula qualquer pretensão de uma suposta reivindicação de igualdade com Deus, seu Pai: “Mas Jesus respondeu, e disse-lhes: Na verdade, na verdade vos digo que o Filho por si mesmo não pode fazer coisa alguma, se o não vir fazer o Pai; porque tudo quanto ele faz, o Filho o faz igualmente.” Um dos atributos de Deus é a auto-suficiência, de modo que se o Filho alegou que não podia por si mesmo fazer coisa alguma, então fica óbvio: Ele não estava afirmando ser Deus.
Temos ainda uma terceira implicação se considerássemos corretos os termos técnicos usados pela teologia pós-apostólica da trindade. Em Jo. 10.30, Ele, Jesus, afirma enquanto Filho ser um com o Pai, ou seja, não seria, nesse caso, uma identificação com a deidade, mas com a hipóstase Pai. Porém o credo atanasiano, que diga-se de passagem não foi composto por Atanásio, afirma: “não confundindo as pessoas e nem dividindo a substância”. Aceitar a igualdade plena baseado nesse versículo seria confundir as pessoas, pois é delas que o texto fala (Pai e Filho), e contrariaria, ainda, Agostinho que disse: “O Pai é só Pai, o Filho unicamente Filho”8. Além do mais em outro momento o Filho diz, como já visto, ser menor que o Pai, Jo. 14.28 “Vou para o Pai; porque meu Pai é maior do que eu.”, então a igualdade falada em Jo. 10.30 não está na natureza, mas na unidade de propósitos. Há que ser observado ainda o fato de como Jesus contava ele e o Supremo Ser, em Jo. 8.17, ele diz: “Eu sou o que testifico de mim mesmo, e de mim testifica também o Pai que me enviou.”, ele disse isso quando reivindicou a validade da lei do testemunho que exige dois, se ele fosse um único ente com o Pai, não poderia reivindicar legitimamente a lei. Em João 14.1 lemos: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim”. Tanto na identificação do Eterno como seu Pai ou como Deus, Jesus ao incluir-se em uma contagem, conta como entes distintos, dois e não um. Assim, parece realmente, por vários e vários motivos, não haver razão para achar que Jesus tenha pretendido ser Deus, nem mesmo igual a Deus quando afirmou: “Eu e o Pai somos um”.
1 Agostinho in A trindade, Paulus Editora, 2ª Edição – 1994, pág. 219. Essa afirmação de Agostinho é prejudicada pela construção grega que não usa “ἴσος” (isos) mas, “ἕν” (hen), o neutro de “εἷς” que significa “um”. Se fosse usado “Isos” poderia ser traduzido por “igual” ou “equivalente”. “Isos” é a mesma palavra usada em Fp. 2.6 quando é dito que Jesus NÃO quis valer-se de sua divindade para tentar se apossar de igualdade com Deus.
2 Ele desafia aos que discordam de suas reflexões e afirma: “apresente a sua explicação, se o quiser, e impugne a minha se puder.” Op. Cit. Pág. 29
3 Shemá é uma palavra hebraica que significa “OUVE” e esta inicia Dt. 6.4 “Ouve, Israel, o Yahweh nosso Deus. Yahweh é um.” que é a declaração de fé do monoteísmo bíblico e a esta referencia.
4 “homoousios” significa “mesma substância”, é a palavra usada atualmente nos meios teológicos trinitários para dizer que Deus e Jesus são a mesma deidade.
5 Agostinho tenta desfazer as palavras de Jesus, dizendo que apesar dessa afirmação Ele é igual, e filosofa, nos seguintes termos: “... em que o Pai é maior? Se é maior, há de ser pela grandeza. Mas como o Filho é sua grandeza não pode ser maior do que aquele que o gerou nem o Pai é maior do que a grandeza pela qual é grande. Portanto, é igual.” (Op. Cit pág. 220) , perceba que além de ir contra o que está sendo afirmado na Bíblia, ele não usa a Bíblia para defender esse estranho argumento, apenas lança premissas que não passariam pelo crivo do restante das Escrituras, e nem pela lógica, pois ele intencionou criar uma situação circular que seria: O Pai é maior que o Filho pela grandeza, mas como o Filho é a grandeza do Pai, então, é igual. O que é esse marabalismo senão uma agressão ao que a Bíblia afirma: “o Pai é maior do que eu” e, por via de consequência é, também, uma agressão à percepção de quem estuda a Bíblia.
6 Agostinho in A trindade, Paulus Editora, 2ª Edição – 1994, pág. 53
7 Quando Jesus já estava preso e sendo julgado o sumo sacerdote lhe perguntou: “Conjuro-te pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus”. Vemos que a expressão “Filho de Deus”, no sentido messiânico, associa-se com a palavra “Cristo”. O Sacerdote insistia com Jesus, para que ele disse, pelo Deus vivo, se era o Cristo, Filho de Deus. Para o Sumo Sacerdote a expressão “Filho de Deus” não o identificava como “Deus”, mas como “Cristo”. Isto estava na mente dos judeus da época, como se confirma nas palavras de Marta, em Jo. 11.27; nas palavras de João, o evangelista, em Jo. 20.31; e até os demônios em Lc. 4.41, além de outras ocorrências. Os fariseus O rejeitavam porque não viam nEle, Jesus, o cumprimento das profecias, então, para eles, se Jesus se auto afirmava “o Cristo”, era se fazer Deus, não no sentido da igualdade, pois o Ungido de Deus, não é o próprio Deus, mas de tomar o lugar para ter autoridade de se auto proclamar Cristo, pois somente Deus pode designar o seu Cristo. Se os fariseus cressem nas Escrituras de forma correta creriam em Jesus e não o acusariam , pois perceberiam que Deus o havia enviado, e porque não o criam, entendiam que Jesus estava querendo se fazer como Deus para se proclamar Cristo, daí o acusarem de blasfêmia.
8 Agostinho embora tenha dito isto, tenta, ele mesmo, desfazer o que disse usando de extrema subjetividade ao afirmar acerca de Jo. 10.30 que “Portanto, o Pai e o Filho são um pela unidade de substância…” – A Trindade, pág. 220