I Jo. 5.20 “E sabemos que já o Filho de Deus é vindo e nos deu entendimento para conhecermos o que é verdadeiro; e no que é verdadeiro estamos, isto é, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna.” (ACF). Este versículo é muito bom e muito digno de ser estudado, considerando o tema que o envolve! Aqui há aparentemente duas dificuldades. A primeira é quando se diz que “estamos no verdadeiro, isto é, em seu Filho Jesus Cristo” e a segunda é “Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna”. A preposição colocada aqui é “ἐν” (en), que, em grego, é usada com locativo, instrumental e raros dativos. Como instrumental pode significar “por” e “com”1. Nesse ponto, vale lembrar que a expressão “isto é” constante da Almeida Corrigida Fiel, e que seria a primeira dificuldade, não está presente nos originais gregos, e foi acrescentada como um indutor de conclusão, o que mostra que todos os tradutores, inclusive os das nossas Bíblias, acrescentam ou modificam textos bíblicos para favorecer determinada crença. Deve-se registrar que as expressões “e no que é verdadeiro estamos” e “em seu Filho Jesus Cristo”, apresentam a mesma forma grega em uma construção ligeiramente diferente por conta do verbo na primeira delas. O uso do verbo “estar” influi nesse julgamento, pois quando se diz “estamos no verdadeiro” temos a ideia locativa. Já o trecho “em seu Filho Jesus Cristo”, pode ser traduzida “por seu Filho Jesus Cristo” ou “com seu Filho Jesus Cristo”. E fica a interrogação: Qual a melhor forma de entender a expressão? Bem, basta entender o que o verso, como um todo, quer dizer. Observe que o versículo principia informando que Jesus veio para nos dá a conhecer o Verdadeiro, então, indubitavelmente ele é o instrumento para esse fim (Mt. 11.27, Lc. 10.22, Jo. 1.18), logo, é natural entendermos “e nós estamos no Verdadeiro, por seu Filho”. Se for usado “com” deve ser entendido como o uso na frase “fiquei bom com remédio”, onde remédio foi o veículo para a finalidade. Para mostrar as várias conceituações do versículo, listo 3 (três) versões católicas:
“Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento para conhecermos o Verdadeiro. E estamos no Verdadeiro, nós que estamos em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna.” Bíblia Ave Maria.
“Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu inteligência para conhecer o Verdadeiro. Estamos com o Verdadeiro e com o seu filho Jesus Cristo. Ele é o Deus verdadeiro e vida eterna.” A Bíblia do Peregrino.
“Mas sabemos que veio o Filho de Deus e que nos deu entendimento para que conheçamos o verdadeiro Deus e estejamos no seu verdadeiro Filho. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna.” Matos Soares.
Como se pode perceber esses tradutores trinitários não entenderam que a palavra “Verdadeiro” esteja se referindo a Deus e a Jesus ao mesmo tempo naquele trecho do versículo, como parece dar a entender a Almeida Corrigida Fiel, e confirmam a ideia instrumental do Filho no processo de nos fazer conhecer a Deus. Mas isso, é relativamente simples de se entender, porém ao concluir o verso com “Este é...” o tradutor faz muita gente pensar que João esteja se referindo a Jesus; visto que todos nós aprendemos que em português se deve usar “este” para o que está perto e “esse” para o que está longe, pois bem, “Este” no verso sucede imediatamente a expressão “Jesus Cristo”, assim essa parte de I Jo. 5.20 poderia ser algo que causasse dificuldade na defesa do monoteísmo estrito, mas a forma de expressão da língua grega é diferente do nosso português, embora nossa língua tenha alguma coisa dela. W. C. Taylor, em sua gramática, comentando sobre outro assunto, nos dá uma informação valiosa para a compreensão desse uso em grego, ele diz: “… não há pronome correspondente ao nosso ‘esse’, pois ‘hode’ é quase equivalente de ‘este’”2. No versículo que estamos estudando, não foi usado “hode”, que costumam usar para “esses”, mas “houtos” que os dicionários normalmente traduzem por “este”, mas como não há um equivalente exato para “esse” em grego, ainda que devêssemos entender “esse”, “houtos” poderia estar lá da mesma forma. E sobre isso o Gramático escreve: “…houtos pode se referir a um assunto que está mentalmente mais perto da atenção de quem fala ou escreve, embora na ordem anterior das palavras seja mais remoto.”3 Tal entendimento é provado em versículos como At. 7.18, 19 “Até que se levantou outro rei, que não conhecia a José. (19) Esse, usando de astúcia contra nossa linhagem, maltratou nossos pais”, em grego temos: “ἄχρι οὗ ἀνέστη βασιλεὺς ἕτερος ἐπ’ Αἴγυπτον ὃς οὐκ ᾔδει τὸν Ἰωσήφ, οὗτος κατασοφισάμενος τὸ γένος ἡμῶν ἐκάκωσεν τοὺς πατέρας”, perceba que a mesma palavra grega foi traduzida por “Este” em I Jo. 5.20 e por “Esse” At. 7.19, também pode-se ver situação semelhante em At. 4.10,11 “Seja conhecido de vós todos, e de todo o provo de Israel, que em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, aquele a quem vós crucificastes e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, em nome desse é quem este está são diante de vós. (11) Ele é a pedra que foi rejeitada por vós…”, aqui οὗτος (houtos) foi traduzida por “Ele”, referindo-se não a quem estava imediatamente mais próximo no relado, mas a Jesus que foi citado no início do verso anterior, pois doutra sorte o paralítico é quem seria “a pedra que foi rejeitada” e não Jesus. Mas, talvez a ocorrência mais significativa seja I Jo. 2.22, visto que estaremos buscando exemplo nos próprios escritos de João, ali lemos “Τίς ἐστιν ὁ ψεύστης εἰ μὴ ὁ ἀρνούμενος ὅτι Ἰησοῦς οὐκ ἐστιν ὁ Χριστός; οὗτος ἐστιν ὁ ἀντίχριστος ὁ ἀρνούμενος τὸν πατέρα καὶ τὸν υἱόν.”, perceba que “οὗτος” (houtos) segue imediatamente “ὁ Χριστός” (Cristo), mas seria completamente descontextual, e porque não dizer esdrúxulo, requerer o demonstrativo “este” ao invés de “esse” por conta da presença da partícula “οὗτος” (houtos), pois estaríamos chamando o Cristo de anticristo. Isto posto, olhemos para I Jo. 5.20 e consideremos o que João aprendeu quando Jesus ainda andava com ele nas ruas da judeia. Se João era um homem devoto, e cremos que sim, certamente não era de seu desconhecimento as ocorrências na Bíblia da expressão “verdadeiro Deus”, pois essa expressão aparece em II Crônicas 15.3, Jeremias 10.10, João 17.3 e I Tessalonicenses 1.9, em todas as vezes ela se refere apenas ao Pai. Uma delas João ouviu do próprio Jesus Cristo. O Evangelista também corrobora em 1.18 de seu evangelho, que o Filho nos deu a conhecer o Pai. Façamos, então, uma releitura de I Jo. 5.20: A parte “a” do verso diz “E sabemos que já o Filho de Deus é vindo, e nos deu entendimento para conhecermos o que é verdadeiro; e no que é verdadeiro estamos…” Perceba que até aqui não há como achar que João esteja chamando Jesus de “verdadeiro” para concluir que ele seja o “verdadeiro Deus”, embora que ele seja o verdadeiro Filho, pois o foco recai sobre a ação do Filho de Deus em nos dar entendimento. Não parece razoável presumir que o “verdadeiro” acerca do qual o Filho nos veio dar conhecimento seja ele mesmo já que o próprio Jesus disse não testificar de si, logo ele é o instrumento para chegarmos ao conhecimento de Deus. Dessa elucidação decorre o entendimento da parte seguinte do verso: “e no que é verdadeiro estamos”. Em I Jo. 4.15 lemos: “Qualquer que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus está nele, e ele em Deus. 16 E nós conhecemos, … e quem está em amor está em Deus, e Deus nele”; note, aqui mais uma vez é feita a distinção de Jesus como Filho e de estarmos em Deus (Deus um outro ente) por causa da nossa aceitação ao Filho. Então, até esse ponto temos a compreensão natural de que o “Verdadeiro” acerca de quem Jesus nos deu entendimento para o conhecermos não é ele próprio, mas aquele de quem ele é Filho. O verso de I Jo. 5.20 segue dizendo: “… em seu Filho Jesus Cristo.” (exclui o “isto é” inexistente do original grego), aqui o português e a tradição trinitária prejudica a naturalidade do entendimento do verso, porque a expressão “em seu Filho” pode ter, pelo menos, duas acepções, mas só é vista de uma forma: que o Verdadeiro referenciado por João é o Filho. Essa é forma que quebra a sequência do que vimos até agora, e ignora um detalhe bem importante da frase, pois ao dizer “Em seu Filho”, esse pronome “SEU” está se referindo a alguém! Quem? Façamos uma releitura do trecho: “e no que é verdadeiro estamos, em seu Filho Jesus Cristo”, ora é natural percebermos que existe um personagem no verso além do Filho, que é a causa do verso e através do Filho estamos NELE. Ora, se esse “SEU” não se refere ao “verdadeiro”, em quem estamos, da frase anterior, a quem, então, se refere? É provável que todos concordemos que Jesus não pode ser Filho dele mesmo! Logo ao dizer “em seu Filho” esse “EM” não tem intenção de relacionar “e no que é” para se concluir que “O Verdadeiro” e o Filho do “Verdadeiro” sejam uma coisa só, mas mostrar que pelo Filho, ou no Filho, se obtém o entendimento para conhecermos o “Verdadeiro Deus e a vida eterna”, por isso Jesus disse, orando ao Pai: “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro”.
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1 Taylor, W. C in Introdução ao Estudo do Novo Testamento Grego, Juerp 1990, pág. 29
2 Taylor W. C. Op cit, pág. 293
3 idem