I Tm. 3.16. A versão Almeida Corrigida e Fiel, traz assim o versículo: “… Deus se manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória.” Este foi usado por muitos e por um longo tempo, e em alguns ciclos ainda é, como um dos textos que confirmavam a crença de que Jesus é o próprio Deus Eterno. E aqui temos um fato curioso que tem haver diretamente com os originais gregos, pois outras Bíblia trazem: “…Aquele que se manifestou em carne, foi justificado em espírito, visto dos anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, e recebido acima na glória”. Como é sabido o Novo Testamento foi escrito em grego, mas os autógrafos, ou seja, os textos feitos diretamente pelos apóstolos ou seus escribas não existem mais, ao menos que se saiba, e o que há são milhares de cópias das cópias, em sua maioria fragmentos de partes do NT. Quando um manuscrito ia envelhecendo e se desfazendo outro era feito para ocupar seu lugar, e outros eram feitos para suprir o aumento do número de ekklesias que demandavam mais cópias para leituras públicas nas congregações. Nesse processo de cópia existia inúmeras dificuldades, dentre elas o material que era caro e escasso, então, para se ganhar espaço e tempo, muitas vezes os copistas costumavam abreviar os chamados nomina sacra (nomes sagrados) e termos mais usuais. Por exemplo, uma das formas de abreviar o nome de Jesus (ΙHΣΟUΣ) era “ΙΣ”; Deus (ΘEΟΣ) se abreviava “ΘΣ”. Foi justamente a possibilidade de abreviações desse tipo que gerou traduções tão diferentes para esse versículo. Ocorre que enquanto “ΘΣ”, abreviação de “Deus” (o sigma também pode ser escrito como um “C” no final das palavras ), “ΟΣ” é o pronome grego “aquele” ou “quem”. Se percebe, rapidamente, a semelhança entre os dois grupos de letras gregas, sendo a diferença entre a abreviação e o pronome apenas um traço horizontal na primeira letra. Costumava-se colocar um traço sobre as letras quando se pretendia identificá-las como uma abreviação, isso é conhecido atualmente como barra-de-contração. Na multidão de cópias feitas dos textos gregos, esse fenômeno aconteceu em I Tm. 3.16. Algumas cópias trazem “ΘΣ” e outras “ΟΣ”. O problema será, então, saber qual é a versão correta. O primeiro que se dispôs a falar e a expor os problemas com a variante “ΘΣ”, em épocas recentes, mesmo sabendo que suas conclusões soariam como afronta a ortodoxia foi o diácono da Igreja Reformada, Johan J. Wettstein, que em 1715 ao ter contato com um antigo manuscrito da carta a Timóteo, percebeu que o traço sobre as letras da suposta abreviação nessa passagem de Carta foi feito, nitidamente, com uma tinta diferente do resto do texto, indicando uma alteração intencional.
Documento examinado por Johan J. Wettstein
(Crédito da imagem http://images.csntm.org/Manuscripts/GA_02/GA_02_0123a.jpg)
Ele percebeu também que a linha que atravessava a primeira letra dando a entender que seria um theta, na verdade, foi produzida por um borrão vazado desde o outro lado do documento. A conclusão inevitável foi que ali se travava de “ΟΣ” ou “ΟC” e não “ΘΣ”. No entanto há trabalhos que tentam mostrar o contrário em textos onde não aparecem nem o traço que caracteriza o “Θ” (theta), nem a barra-de-contração “ ” indicando ser a variante “ΟΣ”. O que teria ocorrido, segundo esses defensores, foi o desaparecimento, por efeito do tempo, desses traços em determinado manuscrito. Tudo isso, tem haver com qual dos manuscritos se vai considerar para as conclusões. Nesse ponto vale a pena uma análise, ainda que breve, que permita ao leitor mensurar a questão e construir seu próprio julgamento a respeito.
Quando falamos de “ΘΣ” nessa passagem de Timóteo estamos referenciando o Texto Receptus (TR) e quando falamos de “ΟΣ”, estamos falando do Texto Crítico (TC). Os defensores da variante constante do TR invocam a legitimidade de “ΘΣ” pela quantidade de manuscritos que a contém, estima-se cerca de 600. É, de fato, um bom número de testemunhos. No entanto, a recenticidade desses testemunhos enfraquece esse argumento, pois se um ou dois copistas alteraram o texto de “ΟΣ” para “ΘΣ” por suas convicções trinitárias, e em um ambiente eclesial já completamente trinitário passou a ser produzidas copias do texto com essa alteração, então, todas as cópias subsequentes (ainda que fossem 1000 ou 10.000) que a contém estão apenas reproduzindo o erro dos copistas anteriores. Deve-se observar que praticamente todos os manuscritos que trazem o texto conforme está no TR são cursivos, e, os cursivos têm todos suas existências a partir do século IX, quando os cristãos, já há muito tempo, estavam subordinados a Igreja Romana e a grande maioria das cópias dos manuscritos eram produção exclusiva daquela Igreja. Assim, a busca deve ser feita não pela quantidade de manuscritos gerados dentro do seio de uma igreja trinitária que já era aquela altura a dominante Igreja Católica Apostólica Romana, mas recuarmos o tanto quanto possível no tempo, na investigação de como teria surgido a variante em estudo.
As duas teorias já foram listadas: 1) O grupo “ΘΣ” teria perdido, pelo efeito do tempo, o traço superior e o traço que caracteriza o Theta ou um copista teria apressada ou descuidadamente omitido justamente esses dois traços gerando a variante “ΟΣ”. 2) A teoria contrária afirma que alguns copistas alteraram o trabalho de outros acrescentando deliberadamente por influência teológica o traço característico da barra-de-contração e o traço no centro do “O” (ômicron) transformando-o em um “Θ” (theta). Aqui já dá para atribuir algum peso a razoabilidade das teorias. Qual seria o fato mais fácil de acontecer? O tempo apagar dois traços de uma letra e não apagar a letra? Um copista esquecer dois traços em um mesma letra? Ou um copista colocar dois traços no conjunto de letras em um manuscrito pré-existente?
No livro Qual o Texto Original do Novo Testamento, o Dr. Norma Wilber Pinkering reconhece que “A hipótese de ambas as linhas se desvanecerem, como aqui no Códice A, é presumivelmente um evento infrequente. A hipótese de um copista inadvertidamente omitir ambas as linhas também seria um evento infrequente, presumivelmente, mas deve ter acontecido pelo menos uma vez, provavelmente bem cedo no segundo século e em circunstâncias que produziram um efeito que se propagou amplamente.” Aqui se percebe que mesmo defendendo a leitura “ΘΣ” o Dr. Pinkering reconhece ser muito difícil que o tempo tenha apagado dois traços da letra, um em cima e outro no centro, sem ter, também, apagado o restante da letra, de igual modo considera difícil um copista omitir ambas as linhas ao mesmo tempo, mas, mesmo reconhecendo ser infrequente e apenas presumível a suposta alteração de “ΟΣ” para “ΘΣ”, ele rejeita “OΣ” alegando que seria uma leitura grega aberrante, pois, segundo ele, soaria estranho “o mistério … quem”, atribuindo a essa palavra um único significado, nesse caso reconhecendo apenas “quem” como tradução, ignorando desse modo os outros significados dessa partícula grega conforme atesta os léxicos: “aquele” ou “o que”1 Como já dissemos é possível constatar por exame grafológicos e de material que em alguns manuscritos antigos houve o acréscimo posterior dos traços que mudam a palavra atestando a fraude.
Os manuscritos mais antigos que trazem “ΘΣ” são o Ac (séc. V), C2 (séc. V). Essa leitura é atestada por Dionísio, Apolinário, Deodoro, Gregório de Nissa, Crisóstomo, Teodoreto e duvidosamente Dídimo.
Os manuscritos mais antigos que trazem “ΟΣ” são o א (séc. IV), A* (séc. V), C* (séc. V). Essa leitura é atestada por Orígenes (lat), Dídimo, Epifânio, Teodoro (lat), Cirilo e Jerônimo O manuscrito D* (séc. V) traz “Ο”. Essa leitura é atestada por Severiano, Teodoto de Ancira, Vitorino de Roma, Hilário, Ambrosiastro, Pelágio, Agostinho, Quodvultdeus e Varimadum.
É fácil perceber que há manuscritos iguais nas duas relações, com um indicativo sobrescrito. O carácter sobrescrito atesta a qualidade do manuscrito existente. O (*) indica que, conforme está descrito no aparato crítico do Novo Testamento Grego da Deutsch Bibelgesellschaft e editado pela Sociedade Bíblica do Brasil em 2008, essa é considerada a leitura original do texto e o (2) ou (c) indica que é a leitura de um corretor. O manuscrito א (Aleph) do séc. IV atesta como original o “ΟΣ”.
Assim, os peritos comprovaram a alteração neste e em quatro outros antigos manuscritos, optando, desse modo por “OΣ” como sendo o termo correto e a tradução “Aquele que se manifestou em carne...” como a melhor tradução do versículo, e isto é confirmado também pela evidência interna, pois é inconcebível e sem sentido Deus precisar ser “justificado no Espírito”. Além de não ser do estilo de Paulo a fusão do Pai, a quem ele sempre chama de Deus com o Filho, a quem ele sempre chama de Senhor. O Pe. Matos Soares, trinitário, que traduziu sua Bíblia do Latim, ou seja, de um texto que não sofreu a crítica textual dos elaboradores do TC, concorda com isso e assim traduz o verso: “… grande é o mistério da piedade, que se manisfestou na carne, que foi justificado pelo Espírito, visto pelos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, exaltado na glória.” Por conta dessas constatações esse versículo não está mais sendo usado como defesa trinitária. Além do mais não se vê nenhuma citação desse verso na controvérsia do IV século, quando a questão da deidade de Jesus Cristo Nosso Senhor ainda estava sendo construída pelos bispos daquela que seria mais tarde conhecida como Igreja Católica Apostólica Romana.
Outro versículo que está caindo em desuso, à medida em que o conhecimento avança, é Jo. 8.58 “Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, eu sou.” Como já foi visto a reivindicação de semelhança com Ex. 3.14 é impróprio por não se tratar da mesma expressão se considerarmos as línguas originais da Bíblia, ficando, a formação da confusão por conta da opção do termo adotada pelos tradutores.
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1 Léxico do Novo Testamento Grego – Edições Vida Nova, pág. 149 . O Dicionário do Grego do Novo Testamento – Paulus Editora, pág. 338 traduz por que, o qual, a qual. Esse dicionário alista como tradução possível “quem” quando a partícula está em uma construção interrogativa.