Em defesa do eterno conceito de Deus como um e único

Mês: outubro 2010

Iguais na Deidade e diferentes nas funções?

Esta é uma afirmação comum em meios trinitários. Certamente tal colocação é uma tentativa de justificar ou equacionar as diferenças perceptíveis entre Pai, Filho e Espírito Santo, que comprometem a alegada coigualdade. O grande problema é: Como podem ser iguais na Deidade e diferentes em qualquer outra coisa, se ser Deus significa ser completo em si mesmo. Se qualquer um dos três é exatamente Deus, então, se Deus é Pai, os três seriam Pai, pois não se pode desassociar Deus de sua Paternidade, a não ser que Deus seja um ente e o Pai outro, o que nenhum de nós concordaremos ser possível, ou que Deus seja uma abstração1, e, não um ser pessoal. Ora, não dizem que o que Deus é o Filho é? Pois bem! Deus é o Pai do Filho. Se Jesus é Deus, é por consequência Pai de si mesmo. O mesmo princípio serve à classificação de Filho e Espírito Santo, pois se Deus é o Filho, ou mais especificamente se o Filho é Deus, então, não há como dizer que algum outro que seja tão Deus quanto o Filho, não seja também Filho. Assim, se considerarmos verdadeiro o dogma trinitário não poderia haver distinção entre os entes que “compõe” ou que “são” Deus, mesmo que sejam em funções ou atividades, pois nunca devemos perder de vista que ser Deus é ser completo em si mesmo e por isso nada há que Deus possa ser que outro que se diga também Deus em coigualdade  não seja também. Talvez por mais essa inconciliável situação dizem os defensores desse dogma que ele é um mistério insondável.

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1 Do latim abstrahere: a) gramaticalmente, é o ato pelo qual nosso espírito separa, num objeto, uma qualidade particular para considerá-la isoladamente de todas as outras, e com exclusão do próprio sujeito, b) Filosoficamente, abstrair consiste em separar (abstrahere = arrancar, desligar) pelo pensamento, ou considerar separadamente, o que não pode ser dado separadamente, na realidade. c) Processo mental, pelo qual certos caracteres, atributos ou relações são observados, independentemente de outros, que são negligenciados.

Justino e a Trindade

Justino, de quem Taciano foi discípulo, afirma “Cristo era o Logos, isto é, a própria razão divina, a qual Deus Pai admitiu sair de si mesmo sem a diminuição de seu próprio ser.”1 também dizia “No princípio, antes de todas as criaturas, Deus gerou um poder racional a partir de Si mesmo”2, mais uma vez se vê, nas palavras desse antigo cristão, que o Filho não era, na eternidade, um ente independente do Pai, mas, sim, surgido a partir DELE antes de todas as eras, ou seja Cristo estava em Deus, mas como a sua razão que de Deus, pelo seu infinito poder, emanou sem que houvesse variação no Pai. Assim, quando ele declarou àquela época: “Que nós somos ateus, quem estiver em são juízo não o dirá, pois cultuamos o Criador deste universo, do qual dizemos, conforme nos ensinaram, que não tem necessidade de sangue, libações ou incenso. […] Em seguida, demonstramos que, com razão, honramos também Jesus Cristo, que foi nosso Mestre nessas coisas e para isso nasceu, o mesmo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, procurador na Judeia no tempo de Tibério César. Aprendemos que ele é o Filho do próprio Deus verdadeiro, e o colocamos em segundo lugar, assim como o Espírito profético, que pomos no terceiro. De fato, tacham-nos de loucos, dizendo que damos o segundo lugar a um homem crucificado, depois do Deus imutável, aquele que existe desde sempre e criou o universo. É que ignoram o mistério que existe nisso e, por isso, vos exortamos que presteis atenção quando o expomos3, ao contrário do que afirmam alguns trinitaristas, Justino não está defendendo uma trindade de seres coiguais, nem essa ideia se desprende dos textos requeridos, pelo contrário, pois ele afirma cultuar ao Criador e, também, honrar a Jesus Cristo. Perceba culto a Deus e honra a Cristo, isso, sem dúvidas, não é uma afirmação de coigualdade na Deidade, muito mais quando ele mesmo diz que põe o filho em segundo lugar e não em igualdade com Deus. Justino também era do II Século.

É impressionante observamos em muitas literaturas as citações de Justino alegando que ele era trinitário, quando sabemos por registros históricos que ele não alegou isso, e, pelo contrário, trata a Deus, o Pai, como aquele que gerou por emissão o Filho antes do processo de criação do céus e da terra: “Mas esse gerado, emitido realmente pelo Pai, estava com ele antes de todas as criaturas e com ele o Pai conversa, como nos manifestou a palavra por meio de Salomão.4
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1 Campernhausen, Hans von in Os Pais da Igreja, Editora CPAD – 2005, pág. 18

2 Kelly, J. N. D in Doutrinas Centrais da Fé Cristã, pág. 75

3 Justino Mártir, ano 151, I Apologia 13,1.3-6

4 Justino Mártir, ano 155, Diálogo com o Judeu Trifão 62,1-2.4 (Obs. A referência a Salomão é, provavelmente, Pv. 8.22)

A Quarta Hipóstase: A “Síntese” dos três

Em termos práticos parece haver um equívoco grave no conceito trinitário que é melhor percebido no trato que Agostinho dá as pessoas da trindade e a própria trindade. Este chegou a cunhar um novo termo designativo da Deidade, chamando-o de o “Deus-Trindade1. Este esboço ele o fez quando tentou estabelecer a identificação dos seres celestiais que apareceram a pessoas como Abraão, Moisés e outros personagens bíblicos. Ele conclui que em certas passagens é possível identificar, por insinuação, algum membro da trindade, mas em outras não, e, nesses casos, segundo ele, pode-se cogitar que o próprio “Deus Trindade” tenha se manifestado em determinados momentos. Chega a declarar acerca de Ex. 13.21,22 que “Mas não está claro se era o Pai ou o Filho ou o Espírito Santo ou a própria Trindade, Deus uno, que se manifestou2 e comenta ainda “Tampouco é evidente se apareceu a Abraão uma das pessoas da Trindade ou se o próprio Deus Trindade3. Aqui começa a ser delineado, pelos argumentos do defensor da doutrina de trindade, a existência, ainda que não admitida, de uma quarta pessoa, hipóstase ou manifestação dentro da Deidade, que seria o “Deus Trindade”, a síntese dos outros três em uma manifestação integradamente plena. Então, se teria, nos dizeres de Agostinho: “Deus Pai”, “Deus Filho”, “Deus Espírito Santo” e “Deus Trindade”, o que inevitavelmente faz-se perceber quatro hipóstases, e desse modo Deus não seria mais uma trindade, mas uma “quadrindade” ou quaternidade.

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1 Op. Cit. Págs. 35 e 191

2 Agostinho in A Trindade, Paulus Editora, 2ª Edição – 1994, pág. 98

3 Idem, pág. 92, ele também cita Deus-Trindade na pág. 35

O que é uma heresia?

Uma palavra que estamos acostumados a ouvir com frequência quando o assunto envolve doutrinas é a palavra “heresia”. É fácil taxarmos alguém de herege ou que determinado ensino é heresia, basta o ensino de quem quer que seja ser diferente do nosso. No entanto, a conotação pejorativa da palavra é coisa relativamente recente. O termo “heresia” vem do grego αἵρεσις (hairesis) e significa simplesmente “escolha”. A palavra não era estranha aos escritores do Novo Testamento e nem aos primeiros cristãos. Os tradutores preferiram traduzi-la por “heresia” em I Co. 11.19, Gl. 5.20, II Pd. 2.1 e, por “seita” em todas as demais ocorrências dessa palavra, notadamente no livro de Atos dos Apóstolos1, inclusive para falar dos seguidores do Nazareno, como vemos em At. 24.5 “Temos achado que este homem é uma peste, e promotor de sedições entre todos os judeus, por todo o mundo; e o principal defensor da seita (heresia) dos nazarenos;”, a palavra “seita” aqui é literalmente “heresia”, ou seja, poderia ser traduzido por “heresia dos nazarenos”, isto significa dizer que, no linguajar de hoje, Jesus e seus discípulos eram considerados hereges ou sectários. Paulo era reconhecido como um membro da seita ou integrante da heresia nazarena da qual os judeus ouviam falar mal, At. 28.22 “No entanto bem quiséramos ouvir de ti o que sentes; porque, quanto a esta seita (heresia), notório nos é que em toda a parte se fala contra ela.

Com o passar do tempo a palavra “heresia” deixou de ter o significado simples de “escolha” ou “linha de pensamento” para ter a ideia de oposição à Palavra de Deus. Os grupos começaram a taxar uns ao outros de herege.

Orígenes, por exemplo, foi considerado um dos maiores teólogos de seu tempo e o mais proeminente antes de Agostinho de Hipona, no entanto foi rotulado de herege posteriormente porque muito de suas posições conflitavam com aquilo que posteriormente foi convencionado como ortodoxia. É verdade, claro, que a obra de Orígenes não necessariamente reflete toda a verdade da fé cristã, mas a percepção posterior que tiveram de seu trabalho mostra que aquilo que não era heresia em determinado momento da história cristã pode ter seu status mudado de acordo com as circunstâncias.

Geralmente o grupo dominante ou em maior número arrogará para si a detenção da verdade acusando o grupo discordante, minoritário, de herege (o inverso também pode acontecer). No entanto pertencer ao grande número não significa necessariamente pertencer àqueles que estão do lado da verdade bíblica. O maior exemplo dessa possibilidade é o contraste das doutrinas bíblicas com as defendidas pela, grande em número, Igreja Católica Romana. A partir do imperador Teodoro I e durante toda a idade média era a igreja dominante e taxava de herege além de condenar à morte todos os que não concordassem com suas doutrinas. Muita gente morreu sem serem dignos desse fim. A igreja romana se pôs acima de todos até à época da Reforma quando aquela que acusava a todos seus opositores de herege, passou a ser reconhecida também como herege. Os reformadores viram nela o símbolo da heresia e da paganização da fé cristã.

O espírito de intolerância e prepotência, no entanto, não é exclusividade dos católicos medievais. Ainda hoje, com muita facilidade, católicos e protestante taxam uns aos outros e ambos a outros grupos de hereges. Dentro do protestantismo mesmo vemos acusações mútuas de heresia, no pior sentido da palavra, com muita facilidade. É verdade que dentro do cristianismo há pontos indiscutíveis de fé como, por exemplo, a afirmação de que Jesus é nosso Salvador. Mas, há outras questões importantes de doutrina que não estão expressamente ditos na Bíblia e são defendidos por grandes grupos cristãos. A chamada doutrina da trindade é uma delas. Assim, pela própria ausência de explicitude dessa doutrina na Bíblia um trinitário poderia, dentro da conceituação e do sectarismo existente hoje, ser chamado de herege. Mas, dentro do conceito etimológico da palavra os diversos seguimentos cristãos são hereges entre si, pois cada um fez uma escolha, e, escolha é o significado primário da palavra heresia.

Portanto a alegação de heresia, não depende exatamente de que determinado ensino ou ponto de vista seja realmente herético (quem o determinará?), pois pode ser apenas a alegação de um grupo que tenha arrogado para si o status de detentor da verdade e discorda do ensino de outro grupo.

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1 At. 5.17, 15.5, 24.5, 24.14, 26.5, 28.22

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