Uma palavra que estamos acostumados a ouvir com frequência quando o assunto envolve doutrinas é a palavra “heresia”. É fácil taxarmos alguém de herege ou que determinado ensino é heresia, basta o ensino de quem quer que seja ser diferente do nosso. No entanto, a conotação pejorativa da palavra é coisa relativamente recente. O termo “heresia” vem do grego αἵρεσις (hairesis) e significa simplesmente “escolha”. A palavra não era estranha aos escritores do Novo Testamento e nem aos primeiros cristãos. Os tradutores preferiram traduzi-la por “heresia” em I Co. 11.19, Gl. 5.20, II Pd. 2.1 e, por “seita” em todas as demais ocorrências dessa palavra, notadamente no livro de Atos dos Apóstolos1, inclusive para falar dos seguidores do Nazareno, como vemos em At. 24.5 “Temos achado que este homem é uma peste, e promotor de sedições entre todos os judeus, por todo o mundo; e o principal defensor da seita (heresia) dos nazarenos;”, a palavra “seita” aqui é literalmente “heresia”, ou seja, poderia ser traduzido por “heresia dos nazarenos”, isto significa dizer que, no linguajar de hoje, Jesus e seus discípulos eram considerados hereges ou sectários. Paulo era reconhecido como um membro da seita ou integrante da heresia nazarena da qual os judeus ouviam falar mal, At. 28.22 “No entanto bem quiséramos ouvir de ti o que sentes; porque, quanto a esta seita (heresia), notório nos é que em toda a parte se fala contra ela.

Com o passar do tempo a palavra “heresia” deixou de ter o significado simples de “escolha” ou “linha de pensamento” para ter a ideia de oposição à Palavra de Deus. Os grupos começaram a taxar uns ao outros de herege.

Orígenes, por exemplo, foi considerado um dos maiores teólogos de seu tempo e o mais proeminente antes de Agostinho de Hipona, no entanto foi rotulado de herege posteriormente porque muito de suas posições conflitavam com aquilo que posteriormente foi convencionado como ortodoxia. É verdade, claro, que a obra de Orígenes não necessariamente reflete toda a verdade da fé cristã, mas a percepção posterior que tiveram de seu trabalho mostra que aquilo que não era heresia em determinado momento da história cristã pode ter seu status mudado de acordo com as circunstâncias.

Geralmente o grupo dominante ou em maior número arrogará para si a detenção da verdade acusando o grupo discordante, minoritário, de herege (o inverso também pode acontecer). No entanto pertencer ao grande número não significa necessariamente pertencer àqueles que estão do lado da verdade bíblica. O maior exemplo dessa possibilidade é o contraste das doutrinas bíblicas com as defendidas pela, grande em número, Igreja Católica Romana. A partir do imperador Teodoro I e durante toda a idade média era a igreja dominante e taxava de herege além de condenar à morte todos os que não concordassem com suas doutrinas. Muita gente morreu sem serem dignos desse fim. A igreja romana se pôs acima de todos até à época da Reforma quando aquela que acusava a todos seus opositores de herege, passou a ser reconhecida também como herege. Os reformadores viram nela o símbolo da heresia e da paganização da fé cristã.

O espírito de intolerância e prepotência, no entanto, não é exclusividade dos católicos medievais. Ainda hoje, com muita facilidade, católicos e protestante taxam uns aos outros e ambos a outros grupos de hereges. Dentro do protestantismo mesmo vemos acusações mútuas de heresia, no pior sentido da palavra, com muita facilidade. É verdade que dentro do cristianismo há pontos indiscutíveis de fé como, por exemplo, a afirmação de que Jesus é nosso Salvador. Mas, há outras questões importantes de doutrina que não estão expressamente ditos na Bíblia e são defendidos por grandes grupos cristãos. A chamada doutrina da trindade é uma delas. Assim, pela própria ausência de explicitude dessa doutrina na Bíblia um trinitário poderia, dentro da conceituação e do sectarismo existente hoje, ser chamado de herege. Mas, dentro do conceito etimológico da palavra os diversos seguimentos cristãos são hereges entre si, pois cada um fez uma escolha, e, escolha é o significado primário da palavra heresia.

Portanto a alegação de heresia, não depende exatamente de que determinado ensino ou ponto de vista seja realmente herético (quem o determinará?), pois pode ser apenas a alegação de um grupo que tenha arrogado para si o status de detentor da verdade e discorda do ensino de outro grupo.

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1 At. 5.17, 15.5, 24.5, 24.14, 26.5, 28.22