Outro escritor da safra do segundo século é Inácio1. O detalhe deste é que, ao menos nos escritos atribuídos a ele, é reconhecido por seus estudiosos como um antissemita2. É, também, dos chamados “pais apostólicos”3, o mais usado pelos que defendem a deidade de Jesus pois nas cartas que ele teria escrito há, pelo menos, cinco ou seis supostas ocorrências de expressões onde ele teria chamado Jesus de Deus. Antes de considerar essas afirmações algumas coisas, porém, precisam ser ditas acerca de Inácio. Além das características antissemitas de seus escritos o que explica a tendência de desapego ao monoteísmo como apresentado pelos judeus; precisamos, também, atentar para algumas coisas: Ainda que a existência de Inácio entre o primeiro e o segundo século d.C seja atestada por historiadores como Eusébio de Cesareia, os escritos atribuídos a ele estão envoltos em muitas discussões, chegando mesmo a desconfiança de não serem autênticos, seja o todo ou parte. Isso ocorre porque, no geral, costumamos associar a data da carta ao período de vida do escritor. Este raciocínio é correto e óbvio, mas em se tratando de escritos antigos temos um problema que deve ser levado em consideração. O fato de Inácio ter vivido no segundo século não significa que o que temos em mãos, alegados com seus escritos, tenham sido realmente escritos por ele ou em sua época. A suspeita a esse respeito se deve, não porque não tenhamos os autógrafos, teoricamente produzidos por ele, mas, pelo fato de haver relatos em seus escritos que são considerados por alguns de seus analistas como anacrônicos para a época. Sheldon comenta o trato que é dado ao episcopado: “Inácio, no entanto, parece ter sido uma exceção à sua época no grau de ênfase que ele colocou sobre a dignidade episcopal. Ele fica tão praticamente só a esse repeito que alguns se dispuseram a questionar a autenticidade das epístolas atribuídas a ele. Baur declara ser impossível que qualquer escritor de uma época tão precoce pudesse ter proferido tais noções episcopais elevadas, como as que aparecem nas chamadas epístolas inacianas4. Nessas epístolas há cerca de 125 vezes a ocorrência da palavra “bispo” sempre o colocando em uma posição de destaque em uma época em que a igreja não estava definida com o tipo de estrutura eclesiástica que ele apresenta. Alguns escritores até mesmo consideram muito do que se fala de Inácio um resultado posterior de elaboração histórica e não de um fato histórico propriamente dito: “Toda a história de Inácio é mais lendária do que real, e seus escritos estão sujeitos a grave suspeita de interpolação fraudulenta5. Algumas coisas na história supostamente escrita por Inácio não se harmonizam com o que ocorria à época sugerida de sua autoria. Na carta de Inácio aos Romanos, por exemplo, ele introduz: “à Igreja que preside na Região dos Romanos” dando a entender uma primazia romana que não se verá senão séculos mais tarde.

Bernard D. Muller lembra que não havia nenhum motivo para Inácio ser levado à Roma para execução. A condenação “por causa do nome e na esperança” para um cristão não seria suficiente. Essa condenação já declarada e reconhecida em suas epístolas também indica que ele não era cidadão romano, pois um cidadão romano seria julgado em Roma. Plínio, o jovem, em uma de suas correspondências ao imperador Trajano, indica que cristãos ainda não julgados poderiam ir à Roma para julgamento desde que fossem cidadãos romanos, mas não  havia necessidade de serem levados para lá os que não sendo cidadãos romanos já houvessem sido condenados localmente. O próprio Plínio não enviou os cristãos já condenados para martírio em Roma: “Eu próprio perguntei-lhe se eram cristãos. Aqueles que reconheciam sê-lo, repeti essa pergunta uma segunda e uma terceira vez, ameaçando-os com o suplício. Aqueles que persistiam mandei executá-los. Com efeito, o que quer que significasse a sua confissão, era para mim indubitável que aquela teimosia, aquela inflexível obstinação merecia ser punida. Houve outros possuídos da mesma loucura, que em razão de sua qualidade de cidadãos romanos, designei para serem enviados a Roma6 (grifei). A menção de Inácio de tornar-se alimento das feras, também não condiciona a necessidade de ir para Roma, pois no apócrifo “Atos de Paulo e Tecla”, Tecla, a heroína, é jogada às feras no anfiteatro de Licaônia, outros dizem que foi na própria arena de Antioquia, cidade de Inácio. Eusébio mesmo informa que os cristãos condenados em cidades gaulesas foram executados lá mesmo, no final do segundo século. A despesa que daria ao império para conduzir por um roteiro como o sugerido nas epístolas inacianas um preso já condenado não justifica o suposto percurso feito por Inácio, principalmente porque ele teria feito uma rota por terra, passando por Esmirna que não era caminho, tornando tudo mais dispendioso que um percurso por mar para duas cidades próximas à costa: Antioquia e Roma. Há ainda uma longa discussão sobre a evidência interna das cartas, que apesar da semelhança entre si, mostram, também, muitas discrepâncias e incongruências, o que aponta para a possibilidade de mais de um autor7. Por questões de espaço não vamos abordar todos os detalhes aqui8, mas a título de exemplo temos a questão do uso recorrente da alusão ao bispo existente em praticamente todas cartas, e apesar de sugerir o primado romano, Inácio não faz menção do bispo em sua carta aos romanos. Bernard D. Muller observa que o arranjo “presbitério”, “presbíteros” e “diáconos” aparece em aos Ef. = 3, aos Mg. = 8, aos Tr. = 9, aos Fd. = 8, aos Smr. = 3, a Pl. = 2, mas aos romanos a referência é zero vez. Não há menção a existência do bispo de Roma e o escritor aos Romanos vai mais além; em 9.1 se lê: “Lembre-se em suas orações da igreja que está na Síria, que tem Deus como seu pastor, em meu lugar Jesus Cristo será o seu bispo – Ele e seu amor.” Nesse verso, a despeito da preocupação latente do respeito, reverência devida e importância dos bispos locais, Inácio teria sugerido que na Síria (que parte da Síria?) ficaria sem bispo local na ausência dele, e Jesus Cristo seria o bispo. Isto é algo completamente discrepante para quem dá tanta importância aos bispos locais nas outras epístolas. Esse detalhe dá a entender uma autoria diferente para a carta aos romanos.

Outro exemplo nos é dado por Muller! A preexistência de Jesus é ensinada em aos Magnésios:

…Jesus Cristo, que estava com o Pai antes dos mundos e apareceu no fim dos tempos.” (6: 1)

… Jesus Cristo, que veio para diante de Pai” (7: 2)

… Os divinos profetas viveram depois de Cristo Jesus. Por isso também foram perseguidos, sendo inspirados por Sua graça até o fim … Jesus Cristo, Seu Filho, que é a Sua Palavra que procede do silêncio, que em todas as coisas era bem agradável a Ele que O enviou.” (8: 2).

Mas, parece ser negada nas outras cartas:

Porque o nosso Deus, Jesus, o Cristo, foi concebido no ventre de Maria de acordo com a dispensação, da descendência de David, mas também do Espírito Santo, e Ele nasceu … E escondida do príncipe deste mundo foi a virgindade de Maria9” (Ef. 18: 2-19: 1-A)

… Jesus Cristo, que era da raça de Davi, que era o Filho de Maria, que realmente nasceu …” (Tr. 9: 1)

Ele é verdadeiramente da raça de David segundo a carne, mas filho de Deus pela vontade e poder divino, verdadeiramente nascido de uma virgem …” (Smr 1: 1)

Isso parece mostrar que a carta aos Magnésios não foi escrita pela mesma pessoa que escreveu a carta aos Efésios, aos Tralianos e aos Smirnianos. Além de conter relatos não endossados pelos escritos neotestamentários como, por exemplo, o relato de Mg. 9.2b “Como podemos viver sem aquele que até os profetas, seus discípulos no espírito, esperavam como Mestre? Foi precisamente aquele que justamente esperavam, quem ao chegar, os ressuscitou dos mortos”, onde se alega que Jesus havia ressuscitado antigos profetas de Israel. Por essas e outras coisas os escritos atribuídos a ele são os que mais tem gerado discussão entre os estudiosos da patrística. Some-se a isso o fato de haver, pelo menos, três recessões de seus escritos: Duas gregas (uma maior e outra menor) e uma siríaca encontrada somente no séc. XIX e que contem três epístolas atribuídas a ele: Epístola de Barnabé, Epístola de Policarpo e Epístola aos Efésios. Houve uma época em que se acreditava que Inácio havia escrito 15 epístolas, dentre elas, aos Tarsos, aos Antioquinos, a Herói, um diácono de Antioquia, aos Filipenses, a Maria de Neápolis (em Zarbo), Primeira Epístola a São João, Segunda Epístola a São João; mas o estudo crítico mostrou tratar-se de falsificações, já que o linguajar adotado é ainda mais anacrônico que as ideias contidas nas outras epístolas. Três epístolas só existem em versões latinas, quando era de se esperar que houvesse também em grego. Mesmo as outras epístolas que são consideradas (ou convencionadas) de Inácio, mas não por todos os especialistas, não estão livres de problemas. Acerca disso a obra Ante-Nicene Fathers10, Vol. 1, informa: “Mas, embora a forma mais curta das cartas de Santo Inácio tenha sido geralmente aceita em detrimento da maior, tem havido uma opinião bastante prevalente entre os estudiosos, que ainda não podem ser consideradas como absolutamente livres de interpolações, ou como de autenticidade inquestionável” (destaquei). Assim, os escritos de Inácio parecem ser aqueles que, fora do Novo Testamento, tem as bases mais inseguras para tentar reconhecer ou atribuir deidade a Jesus a partir deles.

Uma das reivindicações feitas sobre a suposta afirmação de Jesus como Deus nos escritos de Inácio decorre de uma citação da epístola a Policarpo cap. VIII: “em Jesus Cristo, nosso Deus” que não aparece na versão siríaca. Na verdade, todo o capítulo VIII na versão siríaca é apenas um versículos, o epílogo: “Saúdo-o que é contado digno de ir a Antioquia, em meu lugar, como já te mandei”. Da epístola aos Efésios é tirada outra citação usada comumente nos livros de apologética trinitária, cap. VII “Deus existente em carne; verdadeira vida em morte; tanto de Maria e de Deus”, na outra versão grega está diferente: “o Filho unigênito e Palavra, antes dos tempos eternos, mas que depois se tornou também o homem, da Maria Virgem. Pois ‘o Verbo se fez carne’”, além de não se fazer qualquer referência a “Deus existente em carne” no mesmo capítulo na versão siríaca. Ainda no cap. XVIII: “Porque o nosso Deus, Jesus Cristo, foi, de acordo com a nomeação de Deus, concebido no ventre de Maria”. Na versão siríaca não se encontra esse verso e na outra versão grega tem redação diferente: “Porque o Filho de Deus, que foi gerado antes dos tempos eternos, e estabeleceu todas as coisas de acordo com a vontade do Pai, Ele foi concebido no ventre de Maria”. Outra declaração tomada dos escritos de Inácio se encontra na mesma epístola em XIX: “o próprio Deus sendo manifestado em forma humana”, mas, mais uma vez é dito de forma diferente na versão siríaca: “E aqui, na manifestação do Filho, a magia começou a ser destruída”. A outra ocorrência é tirada de sua epístola aos Romanos, cap. III: “Porque o nosso Deus, Jesus Cristo, agora que ele está com o Pai, é ainda mais revelado” e mais uma vez na outra versão grega temos uma declaração diferente: “O cristão não é o resultado de persuasão, mas de poder, quando ele é odiado pelo mundo, ele é amado de Deus”. A outra ocorrência pode ser lida na epístola aos Esmirnianos, cap. I: “Eu glorifico a Deus, Jesus Cristo, que te fez sábio”, no outro texto grego se lê: “Eu glorifico o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que te fez sábio”. Como se percebe os textos gregos, ora diferem entre si, ora diferem do siríaco no trecho que chamam Jesus de Deus. Assim, os escritos atribuídos a Inácio tem problemas sérios que inviabilizam uma identificação positiva de que ele tenha chamado Jesus de Deus por Inácio, e ainda mais quando os próprios crísticos reconhecem que mesmo a versão menor do grego, aceita por muitos, não se pode dizer que está livre de falsificações.

Na suposta epístola de Inácio a Virgem Maria, que é uma das consideradas do pseudo-inácio, é citado um arranjo trinitário, mas, mesmo assim, não como uma consubstancialidade de pessoas na Deidade. Para ele a filiação divina de Cristo tem início com a encarnação: “É a partir dela que há uma Trindade11 de Deus, Cristo e o Espírito Santo12.

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1 Falecido em 110 d.C

2 Inácio faz em todo compêndio atribuído a ele somente três vezes alusões ao Antigo Testamento.

3 Diz-se daqueles que estavam vivos enquanto alguns dos apóstolos também estavam.

4 Apud Henry C. Sheldon em História da Igreja Cristã,, Vol 1, p 147

5 Apud Philp Schaff em História da Igreja Cristã, Vol.2, ch 4

6 Carta de Plínio ao imperador Trajano (111-112 d.C)

7 Para uma amostragem mais detalhada veja https://www.oocities.org/b_d_muller/ignatius.html (originalmente estava em http://historical-jesus.info/ignatius.html)

8 Uma delas, por exemplo, são as referências ao gnosticimo de Basílides surgidas após a morte de Inácio em 110 d.C.

9 Inácio aqui teria feito alusão a virgindade perpétua de Maria, dogma sustentado ainda hoje pela igreja Católica Romana.

10 http://www.biblestudytools.com/history/early-church-fathers/ante-nicene/vol-1-apostolic-with-justin-martyr-irenaeus/ignatius/third-epistle-same-st-ignatius.html

11 Destaque-se que aqui também a palavra trindade é, certamente, adaptação de Padovese, não de Inácio que viveu no ano 107 d.C, portanto antes de Tertuliano, “inventor” da palavra trindade. Inácio, certamente, falou de uma tríade.

12 Idem, pág. 64