At. 5.3 e 4 é invariavelmente o primeiro da lista para se afirmar que Espírito Santo é outra pessoa e ao mesmo tempo Deus, tal qual o Pai. Mas, certamente, é conveniente meditarmos nesse trecho de Atos. Neles lemos: “Disse então Pedro: Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, e retivesses parte do preço da herdade? … Por que formaste este desígnio em teu coração? Não mentiste aos homens, mas a Deus.” Muitos querem ver nessas palavras uma afirmação de identidade plena entre o Espírito Santo e o próprio Deus, como seres distintos em composição de um ser plural. Mas, essa forma de expressão usada no livro de Atos, ou seja, falando de um e apontando outro não é estranha ao seu escritor Lucas, pois ele no evangelho, que leva seu nome, escreveu: “E disse-lhes: Qualquer que receber este menino em meu nome, recebe-me a mim; e qualquer que me receber a mim, recebe o que me enviou…” (Lc. 9.48) ou, ainda, “Quem vos ouve a vós, a mim me ouve; e quem vos rejeita a vós, a mim me rejeita; e quem a mim me rejeita, rejeita aquele que me enviou” (Lc. 10.16). Ora, a mentira de Ananias foi diretamente aos apóstolos, especificamente a Pedro, mas daí surge a expressão “Não mentiste aos homens...”. O interessante é notarmos que era isso que Ananias pensava haver feito; mentido apenas aos homens. Ora, o fato de Ananias haver mentido a homens e depois Pedro dizer que ele, na verdade, mentiu ao Espírito Santo e depois diz-se que ele mentiu a Deus, não faz dos homens (ou não faz de Pedro) o Espírito Santo (já que a mentira tinha sido dita a um homem) como não faz do Espírito Santo um ente distinto e identificado como o próprio Deus. Assim, de modo similar alguém que rejeita as palavras evangélicas ditas por um crente pensa rejeitar ou resistir ao crente quando, na verdade, está rejeitando a Deus. Lembremos que o Espírito Santo era quem movia e move a ação de comunhão na congregação, de modo que as iniciativas dos apóstolos eram ações do Espírito (“Ele vos guiará…” – Jo. 16.13). Tenhamos em mente que o Espírito Santo é o representante de Deus na vida de Jesus, e o representante de Jesus entre seus discípulos após sua ascensão. Mentir aos apóstolos é mentir ao Espírito Santo que representa Jesus e por consequência é mentir a aquele que a pedido de Jesus enviou o seu Espírito (Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome… Jo. 14.26), ou seja, é mentir primeiramente a Deus. Logo, At. 5.3-4 é insuficiente para se chegar a conclusão trinitária, que contextualmente não se sustenta; portanto, não há razão para ver nesses versos de Atos um terceira pessoa da trindade consubstanciada com o Pai.
Categoria: Versículos comentados
Rm. 10.13 “Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” é uma citação da profecia constante em Jo. 2.32. Os trinitarianos costumam assumir que nessa citação Paulo estaria identificando Jesus como sendo o Yahweh do A.T., já que a palavra “Senhor” em Jo. 2.32 se refere ao Tetragrama, e Rm. 10.13 é comumente aceito como se referindo a Jesus.
Vamos analisar se a proposta trinitária tem amparo a partir da perspectiva de Paulo. Vamos ver se ele faz distinção entre um e outro ou se costuma intercambiar Jesus com Deus como se fosse o mesmo ser, ainda que pessoas diferentes (lembremos que “pessoa” e “ser” nem mesmo eram conceitos teológicos na época de Paulo, mas esse anacronismo é sugerido pela linha trinitária). Os versos 3 e 4 mostram Paulo falando que se deve conhecer a justiça de Deus e diz que Cristo veio para justiça de todo aquele que crê. O verso 9 deixa claro que esses dois referentes, “Deus” e “Cristo”, na mente de Paulo são tolamente distintos em termos de identificação pessoal, não somente em individualidade, mas também em naturezas. E não se está falando aqui de distinção pessoal (hipostática) do Pai e do Filho, mas de Deus e do Filho como seres distintos. Esse pequeno detalhe faz toda diferença, pois os trinitarianos costumam alegar que Deus é uma trindade, mas seletivamente restringem a identidade de Deus ao Pai, em vez da trindade, quando os versículos mostram a distinção entre Deus e Jesus. O verso 9 diz: “A saber: Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”. Parece nítido que para Paulo um é Deus, e o outro é o ressuscitado por Deus. Logo, a natureza de um é imortal (Deus) e a do outro mortal (Senhor Jesus). Essa distinção é marcante na teologia de Paulo uma vez que ele tem a Deus como o imortal e invisível (I Tm. 1.17 “Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível, ao único Deus sábio, seja honra e glória para todo o sempre. Amém.”) e a Jesus como o que foi visível (I Co. 15.8 “E por derradeiro de todos me apareceu também a mim, como a um abortivo”) e mortal (At. 17.31 “Porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo, por meio do homem que destinou; e disso deu certeza a todos, ressuscitando-o dentre os mortos”). Portanto, o Apóstolo conhecia as características distintivas entre Deus e Jesus. Ele considerava que a quem Deus ressuscitou foi o homem Jesus, o mesmo Jesus citado em Rm. 10.9, logo não tinha como ele os entender como sendo o mesmo Deus e por consequência o mesmo Yahweh. Desse modo, estava claro para o Emissário do Senhor que um é criador e o outro é criatura. Diante disso, mesmo Jesus recebendo o título de “Senhor”, nesse verso, é mais que óbvio que “Senhor”, até o momento, não é uma referência ao Deus a quem Paulo reconhece como “O Deus de nossos pais” (At. 13.17; 22.14, 24.14).
Voltemos um pouco e lembremos do questionamento surgido no verso 6 e 7, que implica em: “Quem trará do alto a Cristo?” e “Quem torna a trazer dentre os mortos a Cristo?”. É a partir da exposição de possível dúvida, que envolve o não acreditar na justiça de Deus, que Paulo diz no verso 9, “se… creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” e, aqui, então, cabe outra pergunta: Quem é o agente e quem é o paciente do ato da ressurreição que leva ao que crê obter a salvação? A resposta inapelável é: “Deus trará do alto Cristo” e “Deus torna a trazer dentre os mortos a Cristo”; justamente o “homem designado por Deus” descrito em At. 17.31. Logo, o agente da ressurreição é Deus.
Paulo nos orienta que a “justiça que é pela fé” é aquela que se deve crer como provida por Deus que a executou pela ressurreição de Cristo. No verso 9, portanto, Paulo mantém o conceito que permeia a epístola, como em Rm. 4.24b, 25 “…cremos naquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; 25 O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação.” É necessário crer em Deus como aquele que ressuscitou a Jesus. O Apóstolo, portanto, não tenta em momento algum descrever Jesus como sendo o Deus do Antigo Testamento.
No verso 10 se assevera: “Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação”. Note que esse verso diz o mesmo de Rm. 4.24b,25: Deve-se crer em Deus que ressuscitou Jesus para nossa justificação/salvação. Assim, a crença de que Paulo fala é primariamente em Deus, visto que sem Deus não haveria a ressurreição de Jesus e não é possível crer no Filho sem que se creia antes no Pai. De modo que o Cristo não é um fim em si mesmo, mas um meio para se chegar a Deus (Hb. 7.20).
O verso 11 traz uma citação provavelmente baseada em Is. 45.17 e ali se tem como referência a Yahweh. A questão aqui é: Paulo está aplicando o texto a Jesus, o identificando pessoalmente como Yahweh? Ora, o verso de Isaías era aplicável à época do profeta a Deus, e não há razão para acreditarmos que tenha havido mudança nos tempos de Paulo, até porque ele sempre faz distinção entre Deus e Jesus, não só no capítulo 10 de Romanos, mas, em todos os seus escritos. O texto diz: “…Todo aquele que nele crer…”, mas “nele” quem? Parece impositivo, pela boa hermenêutica e não uma exegese restritiva, que a resposta é “cremos naquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus” (Rm. 4.24b). Quem ressuscitou a Jesus? O Deus a quem Paulo se dirige em oração em Rm. 10.1 em favor de Israel. Essa percepção explicitada por Paulo, mantêm, sem dificuldades, a percepção de que a citação de Is. 45.17 refletida em Rm. 10.11 é aplicável a Deus também no N.T.
Aceitar a justiça de Deus através de Jesus (tema do capítulo da epístola) é, antes de tudo, crer em Deus como aquele que enviou Jesus: “E Jesus clamou, e disse: Quem crê em mim, crê, não em mim, mas naquele que me enviou” (Jo. 12.44), e nessa mesma linha Jesus diz em Jo. 14.1: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim”. Vale destacar que, como se percebe, nem mesmo Jesus se identifica como sendo o Deus de Israel, por quê Paulo, que aprendeu dele, o faria em Rm. 10?
O verso 12 fala da ausência de distinção entre judeus e gentios, algo já predito que iria acontecer e que isso seria promovido por Deus também. Is. 65.1 é referenciado em Rm. 10.20 “Fui buscado dos que não perguntavam por mim, fui achado daqueles que não me buscavam; a uma nação que não se chamava do meu nome eu disse: Eis-me aqui. Eis-me aqui”. Rm. 3.29 informa “É porventura Deus somente dos judeus? E não o é também dos gentios? Também dos gentios, certamente”. A pergunta que se faz pertinente aqui é: Como os gentios seriam alcançados por Deus? Como Deus planejou fazer chegar aos povos não judeus a palavra de sua Salvação?
Estamos relembrando esses fatos porque a leitura trinitária de Rm. 10 oblitera a presença de Deus nesse discurso escrito de Paulo, assim concluem que no verso 13, onde Paulo cita Joel 2.32, ele estaria falando de Jesus em termos pessoais, ou seja, entendem que Jesus é o próprio Yahweh, em vez daquele pelo qual as nações seriam alcançadas pelo favor de Yahweh. Por isso, cabe resgatar a presença de Deus nos textos para podemos fazer a leitura correta do verso.
Seria a citação do verso 13 uma referência direta a Jesus? O identificando como sendo o ser Yahweh? Não, não há razões contextuais para excluir a pessoa de Deus, que é citado no contexto do capítulo 10, e passar a considerar que se trata da pessoa de Jesus em uma designação (Yahweh) que é atribuída a Deus em todo o Antigo Testamento.
Diante disso, qual a relação de Jesus com o texto? Como já foi visto nesse capítulo de Romanos, Jesus é o agente passivo da ressurreição realizada por Deus para manifestação da sua graça salvadora aos que crerem. Logo, o verso não tem intenção de gerar identidade, mas relação. Deus fez algo e Cristo é a maior e absoluta expressão dessa realização.
Vale destacar que o próprio Jesus se reconhece como um representante de Deus: “Eu vim em nome de meu Pai, e não me aceitais” (Jo. 5.43). As obras feitas por ele são do Pai: “As obras que eu faço, em nome de meu Pai, essas testificam de mim” (Jo. 10.25). Jesus chega a dizer: “eu saí, e vim de Deus; não vim de mim mesmo, mas ele me enviou”. Note aqui que ele diz que veio de Deus, não simplesmente do Pai, como subconscientemente entenderia um trinitariano, mas o texto diz: “de Deus”. Ora, se ele fosse o próprio Yahweh pela citação que Rm. 10.13 de Jl. 2.32, certamente teria vindo dele mesmo. Não há como ele, se fosse o próprio Deus, dizer que não veio dele mesmo, visto que inapelavelmente seria o mesmo Deus do onde diz ter vindo. Não há como ele dizer que veio em nome do Pai, que é Yahweh, em cuja autoridade a sua vinda está, e ele mesmo supostamente podendo se identificar também como o próprio Yahweh, dizer que não veio em seu próprio nome: “eu não vim de mim mesmo”, “vim em nome de meu Pai”.(Jo. 7.28 c. Jo. 5.43).
Os escritores do Novo Testamento tinham perfeito conhecimento que Yahweh, enquanto Deus, é o Pai de Jesus, não o próprio Jesus.
Ex. 3.15 “E Deus disse mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Yahweh Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração”.
At 3:13 “O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou a seu filho Jesus, a quem vós entregastes e perante a face de Pilatos negastes, tendo ele determinado que fosse solto.”
Qual é o nome do Deus de Abraão, Isaque e de Jacó descrito em Ex. 3.15 que glorificou a seu filho em At. 3.13? Certamente Yahweh. Então, Yahweh é Deus ou o Filho de Deus segundo a informação positiva das Escrituras?
Veja ainda At 5.30: “O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, ao qual vós matastes, suspendendo-o no madeiro.” Dois personagens de identificação distintas são descritos: 1) O Deus de nossos pais, e 2) Jesus, o ressuscitado. O nome do primeiro é Yahweh e o nome do ressuscitado não é Yahweh, mas Jesus. Ora, por que Jesus nunca é descrito como “O Deus de nossos Pais”, se ele também é Yahweh?
Talvez, ignorando o que foi dito até aqui, se requeira Rm. 10.14,15 para dizer que o texto realmente busca identificar Jesus com Yahweh. Mas, a pregação de que fala esses versos é uma pregação exclusivamente a cerca de Jesus, ou seja, ele é o único a ser apresentado na pregação referida? O verso 19 diz: “Eu vos porei em ciúmes com aqueles que não são povo” parece indicar que a pregação chegaria ao alcance de quem não conhecia nem mesmo a Deus logo, consequentemente, também a seu Filho; e Paulo segue citando Is. 65.1. Com isso o apóstolo demonstra que não intencionou excluir Deus, o Pai de Jesus, da referência a pregação. Como dissemos, não há como pregar um Filho sem se falar de um Pai; e não há como se falar de um ressuscitado sem se falar de quem o ressuscitou. Logo, não há como pregar a Jesus como Filho de Deus e Salvador sem que se pregue a Deus e seu plano de Salvação. Assim, é perfeitamente cabível a citação da pregação de Isaías 53.1 em Rm. 10.16: “Senhor (Yahweh), quem creu na nossa pregação?” e o verso de Rm. 10.17 fala em “ouvir a palavra de Deus”. Como se houve a palavra de Deus? Jesus responde: “Eu falo do que vi junto de meu Pai” (Jo. 8.38), também diz: “porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer” (Jo. 15.15). Os discípulos e apóstolos foram também os transmissores dessa palavra a gregos e judeus também (At. 13.5 “anunciavam a palavra de Deus nas sinagogas dos judeus”).
Em decorrência dessa necessária contextualização, nesse ponto, talvez valha a pena trazer à baila como determinados textos proféticos são tratados no Novo Testamente, e se o propósito é sempre estabelecer uma identidade pessoal ou se os textos são tomados como paralelos em decorrência da situação.
Veja, por exemplo, Hb. 1.5: “Pois a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei Pai, e ele me será Filho?” A parte final desse verso é uma citação direta da parte inicial de II Sm. 7.14. Será que uma palavra especificamente dita acerca de Salomão, referenciada profeticamente a Jesus torna Jesus o próprio Salomão?
Veja outro caso, Ez. 34.23: “E suscitarei sobre elas um só pastor, e ele as apascentará; o meu servo Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de pastor.” Quem é esse único pastor? A resposta natural, hoje, será afirmar que é Jesus de acordo com Jo. 10.16! Mas, Jesus é Davi literalmente, ou o nome de Jesus é Davi considerando que o nome constante da profecia é Davi? Essa profecia gera uma identidade pessoal entre Jesus e Davi como sendo o mesmo ser?
Em Os. 11.1 encontramos: “Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei a meu filho”. Esse verso que se refere textualmente a Israel no Antigo Testamento, mas é citado referindo-se a Jesus em Mt. 2.15 “E esteve lá, até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta, que diz: Do Egito chamei o meu Filho”. Afinal de contas, devemos entender que Jacó (Israel) é Jesus? Será que não é mais apropriado entender que o texto é citado como referência e não como asseverando identidade?
É fácil concluir que existe um sentido a ser considerado que não passa pela identificação pessoal. Caso contrário teríamos que admitir que Jesus é pessoalmente tanto Salomão, quanto Davi e Israel, ao invés de entendermos como uma representação paralela desses personagens bíblicos.
E isso não ocorre apenas com referência a Jesus na Bíblia. Em Ml. 4.5 está dito: “Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível dia do Yahweh”. A ideia corrente à época de Jesus era que Elias viria antes para preparar a chegada da era messiânica. Os discípulos indagaram a Jesus sobre isso em Mt. 17.10: “Por que dizem então os escribas que é mister que Elias venha primeiro? 11 E Jesus, respondendo, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e restaurará todas as coisas;”. Além de não negar Jesus confirma que Elias realmente viria restaurar todas as coisas antes. A pergunta dos discípulos tinha uma razão de ser por que ninguém viu Elias, ninguém identificou Elias, ninguém se autoproclamou Elias. Como, então, teria se cumprido as Escrituras que dizem que Elias viria primeiro, se ele em pessoa não apareceu? Notemos que o texto profético não diz que seria um representante de Elias ou alguém que tivesse as características de Elias. O verso simplesmente estabelece textualmente que seria Elias sem dar maiores explicações, e por isso era Elias que era esperado aparecer.
Jesus esclarece aos discípulos, em outras palavras, que é preciso considerar que o texto de Ml. 4.5 não pretendeu dizer, como os interpretes da época pensavam, que Elias viria pessoalmente e se manifestaria ao mundo como tal. Jesus disse em Mt. 17.12 “Mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem. Então entenderam os discípulos que lhes falara de João o Batista.” Diante do que Jesus falou, os discípulos entenderam tratar-se de João, o Batista. Ou seja, não houve espanto ao serem informados tratar-se de um representante. Ora, o próprio João Batista quando foi indagado: “És tu Elias? E disse: Não sou.” (Jo. 1.21). Logo, a única explicação cabível e aplicável na situação é que João Batista, apesar de não ser a pessoa de Elias era “o Elias que havia de vir” (Mt. 11.14). Lucas que escreveu seu evangelho depois de apurar os fatos (Lc. 1.1), ou seja, depois dos outros sinóticos, informa que João veio “no espírito e virtude de Elias” (Lc. 1.17), logo, a aplicação ipsis litteris da profecia prescrita em Ml. 4.5 não era a forma correta de entendê-la. Não era a pessoa de Elias que viria, mas um que o representaria.
Esses fatos que envolvem a pessoa de João Batista como conclusivamente um representante de Elias nos ajuda muito a entender textos usados pelos trinitarianos para dizer que Jesus é literalmente Yahweh. Ora, se João, enquanto Elias, veio preparar o caminho de Yahweh faz com que Jesus seja Yawheh?
João Batista é descrito pelos evangelistas como a “Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho de Yahweh, endireitai as suas veredas” (Mt. 3.3, cf. Is. 40.3), e Jesus descreve-o como o Elias que “restaurará todas as coisas” (Mt. 17.11). Ou seja, tanto Is. 40.3 quanto Ml. 4.5 descrevem o mesmo evento: Elias viria endireitar as veredas para Yahweh e restaurá todas as coisas. Os trinitarianos não só admitem como defende que João Batista não é e não pode ser pessoalmente Elias, mas sim sua representação. No entanto, não seguem o mesmo paradigma profético no que se refere a Jesus, e, em vez de reconhecer Jesus como aquele que veio em nome de seu Pai, portanto, uma representação de Deus (como João era representação de Elias sem ser Elias) querem dizer que o nome de Jesus é Yahweh também, sugerindo que ele seria o mesmo Deus da profecia. Ora, dado que Jesus nunca se identificou como Deus, assim como João nunca alegou ser Elias, então, será que não seria um tratamento desuniforme e muitíssimo parcial considerar que João não é o mesmo Elias das profecias, mas considerar que Jesus é o mesmo Yahweh no texto profético em comento?
Essa análise de Ml. 4.5 sobre João Batista não ser Elias, apesar da profecia o tratar como tal, nos diz muito sobre as poucas profecias usadas pelos trinitários para tentar identificar Jesus como sendo Yaweh.
Se Rm. 10.13, ou o relato sinótico de que João Batista (Elias), pretendessem asseverar categoricamente que Jesus é Yahweh seria de se estranhar que aqueles todos que a época teria supostamente acreditado nisso, não o tratassem como Yahweh, e o continuaram tratando como o enviado de Deus, o filho do Altíssmo. Esse é mais um típico caso em que a interpretação trinitária fica descolada da realidade bíblica.
Esse é o fato Bíblico. Um trinitariano para compor algo além disso, terá que ignorar esses fatos e colocar a mente para trabalhar em prol da identificação de Jesus como sendo Yahweh, mas escrituristicamente isso não se sustenta.
Jd. v. 5. Às vezes, aqueles que defendem a não existência de uma trindade nas Escrituras criticam determinadas formas como certos versículos são apresentados nas versões populares, e, ao fazerem isso, são acusados de somente poderem defender suas posições afirmando que há problemas com as Bíblias atuais. Essa é uma acusação injusta porque não é segredo para estudantes perspicazes e dedicados que há diversos versículos cujas redações diferem de um manuscrito para outro, e com isso passam a existir bíblias com textos diferentes entre si (vide I Jo. 5.7 na ARA e na ARC). Isto é um fato. Também é fato que há manuscritos que trazem textos completamente destoantes de restante das Escrituras. A essa altura talvez se pergunte: e o que Jd. v.5 tem a ver com essa história?
Bem, até recentemente (e ainda consta na grande maioria das Bíblias), esse verso era apresentado com a seguinte redação: “Mas quero lembrar-vos, como a quem já uma vez soube isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu depois os que não creram” (destaquei). A palavra negritada é o ponto de nosso interesse. A identificação de quem tirou o povo do Egito não é segredo e a palavra “Senhor” ai é, sem dúvida, o substituto comum nos textos gregos sobreviventes mais populares para o nome de Deus, Yahweh (ou YHWH). O relato que esse verso de Judas referencia é descrito em Dt. 6.12: “fica atento a ti mesmo! Não te esqueças de Yahweh, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”1 (destaquei) e Dt. 20.1: “Quando saíres à peleja contra teus inimigos, e vires cavalos, e carros, e povo maior em número do que tu, deles não terás temor; pois Yahweh teu Deus, que te tirou da terra do Egito, está contigo.” Deve-se ter claro em mente que “Yahweh” nesses textos foi vertido por “κύριος” (Senhor) nos manuscritos mais populares da Septuaginta e é a palavra usual para as referências do Antigo Testamento no Novo Testamento grego do nome de Deus. Vale destacar que a palavra “senhor” é usada em referencias a outras pessoas no NT.
Em Jd. 5 utilizam a palavra “Senhor”, além da ACF, também as Bíblias Almeida XXI, JFA1819, ARC 1911, ARC 1969, ARC1967, BAM, BJ, CNBB, DIF, BKJ, NTLH, NVI, Edição Pastoral, Reina Valera em Português, Tradução Brasileira da Bíblia-TB, Bíblia Viva, CBC, TEB, Bíblia Mensagem de Deus da Ed. Loyola, todas as ARA até a 2ª Edição, dentre outras. Os comentaristas da TEB e da BJ, em nota de rodapé, concordam que esse texto seja uma referência ao Pai. O uso da palavra “Senhor” (κύριος) nesse verso de Judas, nessas versões, tem por base o texto grego que pode ser encontrado tanto no Texto Majoritário, como no Textus Receptus e no Texto Crítico, 3ª e 4ª edição.
Mas, há uma leitura peculiar desse versículo só popularizado antes nas bíblias baseadas nos textos em latim. Tanto a Vulgada Editio, versão católica feita por Jerônimo no séc. IV, quanto a sua revisão, da época da contrarreforma católica, chamada Vulgata Clementina, trazem o texto como “…quoniam Iesus populum de terra Aegypti salvans secundo eos qui non crediderunt perdidit”(destaquei), onde o nome Jesus aparece como sendo aquele que salvou o povo da terra do Egito. Seguindo essa linha se tem, em português, as versões católicas produzidas pelos padres Antônio Pereira de Figueiredo (1790) e Manoel de Matos Soares (1942). Assim, esse texto, com o nome “Jesus”, ficou restrito aos círculos católicos, em especial no meio litúrgico. Fora desse ambiente várias Bíblias católicas passaram a fazer uso do texto grego, e essas não apresentavam o nome “Jesus” em suas versões para esse verso.
É fácil perceber que essa proposta de versão ao sugerir que foi Jesus quem tirou o povo da terra do Egito, busca indicar que Jesus também é o Deus, executor das maravilhas ocorridas no Antigo Testamento. Ou seja, não pretende apontar Jesus como executor da vontade de Deus lá no Egito, mas indicar que Jesus seria o próprio Yahweh. Em outras palavras há um forte viés cristoteísta aí, que busca endossar a existência de uma trindade em Deus ou, no mínimo, um explícito modalismo.
Mas, os católicos produzirem e manterem esse texto em seu meio é natural, já que a língua oficial do Vaticano é o latim. Porém, em tempos recentes, começaram a aparecer versões protestantes afirmando o mesmo. E isso certamente decorre do fato do Texto Crítico de Nestle & Aland 28ª Edição (2012) e da 5ª Edição da Deutsche Bibel Gesellschaft (DBG3), publicado em 2014 optarem como texto principal a variante que apresenta a ocorrência do nome “Jesus” nesse texto: “εἰδότας ὑμᾶς ἅπαξ πάντα ὅτι Ἰησοῦς [Jesus] λαὸν ἐκ γῆς Αἰγύπτου σώσας” (destaquei). Duas edições anteriores do TC, já impressas, traziam a palavra “Senhor”: “εἰδότας ἅπαξ πάντα ὅτι κύριος [Senhor] λαὸν ἐκ γῆς Αἰγύπτου σώσας”4 (destaquei) como texto principal.
Nessa nova linha, a recém-lançada Almeida Revista e Atualizada no Brasil 3ª Edição, também conhecida como Nova Almeida Atualizada (NAA), assim apresenta o trecho: “… quero lembrar-lhes que Jesus, tendo libertado um povo, tirando-o do Egito, destruiu, depois, os que não creram.” (destaquei). A popular NET Bible5, em inglês, mesmo antes do texto UBS5 já grafava “Jesus”6 no verso, mas, ainda que defenda essa variante, anota: “A leitura Ιησοῦς (Ihsous, ‘Jesus’) é considerada muito difícil por vários estudiosos, uma vez que envolve a noção de Jesus agindo no início da história da nação de Israel.” De fato, a ideia de Jesus ser aquele que atua onde o A.T. informa ser Yahweh é absolutamente descontextual dentro da Bíblia. Lembremos, sempre, que a proposta dessa nova redação para Judas 5, não é dizer que Jesus faz por ondem de Yahweh, mas que Jesus é Yahweh.
Os textos críticos atuais, ao trazerem essa variante como texto principal, terminaram por colocar o verso em disputa, pois se a palavra correta for “Senhor”, no contexto Bíblico esse Senhor é, indubitavelmente, Yahweh, mas se em vez de “Senhor” a palavra é “Jesus”, então, um ponto da doutrina trinitária ou unicista ganha força, visto que a preferência será identificar Jesus diretamente como sendo o Yahweh do A.T. Hoje, pouca gente, inclusive entre os estudiosos, concordará com essa última proposta para Jd. 5, mas todas as novas atualizações da Bíblia que se basearem no TC, publicadas a partir de 2012, poderão trazer essa variante, gerando uma mudança de paradigma. Isso poderá criar uma impressão para os futuros leitores que Jesus e Yahweh são o mesmo a partir da comparação desse verso de Judas como os fatos ocorridos no Antigos Testamento. E pior, no futuro poderá se dizer: “não ser admissível discordar, já que Judas é explícito ao identificar Jesus como sendo Yahweh”.
Por que devemos preferir “Senhor” a “Jesus” como a palavra original de Jd. v.5? Bem, apesar de se alegar que há bom apoio pela opção “Jesus”, na verdade, tanto esta quanto a palavra “Senhor” têm apoio de poucos testemunhos antigos que sobreviveram. Se para a variante Ἰησοῦς tem-se o codex B (Vaticanus) do séc. IV, para a variante κύριος tem-se o codex א (Sanaítico) que também é do séc. IV.
Todos os demais manuscritos que apoiam um ou outro são posteriores ao séc. IV. A variante Ἰησοῦς tem, ainda, o A (Alexandrinus) do V, o 337 que é do séc. IX; o 81 do séc. XI; 1241 do séc. XII; 1739 do séc. X; 1881 do sec. XIV; 2344 do séc. XI, dentre outros. Entre os chamados pais, no manuscrito 1739 do séc. X há uma anotação que indica que Orígenes (254 d.C) teria atestado o texto, outros “pais” seriam Dídimo (395 d.C) e Cirilo (444 d.C). Talvez esses pais deem uma ligeira vantagem para a variante apenas em termos de testemunho, mas longe de ser decisiva em seu favor.
A variante κύριος conta, também, com o C* do séc. V; 436 do séc. VII, o Ψ do séc. VIII/IX; os byz (bizantinos); o 181 do séc. X; o 104 do séc. XI; 1505 séc. XII, dentre outros. Entre os chamados pais em seu apoio se tem Efraim (373 d.C), Teófilo (412 d.C) e João Damasceno (754 d.C). Então, se pode dizer que ambas têm boas atestações, mas certamente as duas não podem ser verdadeiras.
A variante κύριος é classificada como “D” no Texto Crítico, e em versões anteriores do TC aparece como texto principal. Isso ocorre quando a Comissão considera “muito difícil” decidir qual variante usar. E, atualmente, a variante Ἰησοῦς é classificada “C”, e isso ocorre quando se considera que é apenas “difícil” decidir pelo uso dela. Ora, se uma tem grau de certeza “D” e a outra “C”, por que se preferiu a “D”, antes da NA 28 e USB5, e agora optou-se pela “C”? Será que isso sugere que Ἰησοῦς é uma variante melhor que κύριος? Não! Porque se fosse não haveria alternância baseada na dificuldade dessas variantes na construção do TC e seria a única opção desde a primeira edição. Na verdade, o problema da incerteza de classificação nessa questão tem a ver com um dos postulados científicos adotados para elaboração do Texto Crítico que é “A leitura mais difícil deve ser a preferida” (ou adotada). A leitura mais difícil para Judas v. 5 certamente é Ἰησοῦς. Mas, a Comissão tinha o entendimento, nas versões 3 e 4 da UBS, que era “difícil a ponto do impossível”, pois, de fato, não é comum que Jesus seja apontado como aquele que libertou Israel do Egito8 ou atuando diretamente e explicitamente no Antigo Testamento. Assim, Κύριος é, sem dúvida, entre as duas, a leitura mais provável, mas adotá-la fere o critério que sugere que deve ser preferida a leitura mais improvável com texto principal. Por isso escolher κύριος, para a Comissão, é mais difícil (daí decorre a classificação D) que escolher Ἰησοῦς (classificado como C).
Curiosamente a Nova Vulgata, portanto, a versão que é atualmente usada nos atos litúrgicos da Igreja Católica, produzida após o Concílio Vaticano II e homologada como versão oficial da ICAR pelo papa João Paulo II, disponível para leitura no site do Vaticano, e, portanto, sem qualquer pretensão de desfazer a crença dessa igreja de que Jesus é Deus e da existência de uma trindade, rompeu com as versões latinas anteriores e destoando das novas versões gregas recentemente produzidas, verteu assim o texto: “quoniam Dominus semel populum de terra Aegypti salvans, secundo eos, qui non crediderunt, perdidit”9. Dominus é a palavra latina para “Senhor”, o que permite entender que foi o Pai o referenciado nesse verso.
Roger Omanson, especialista em crítica textual, comentando esse texto de Jd. 5, reconhece que apesar de Ἰησοῦς ter apoio sólido em determinados manuscritos (mas, o mesmo pode ser dito da variante κύριος, pois há muitos manuscritos que a apoia), alega que Ἰησοῦς é “demasiadamente difícil. É pouco provável que o autor fizesse referência a Jesus num contexto em que escreve a respeito da redenção do povo de Israel do Egito (veja, no entanto, 1Co. 10.4). Além disso, em momento algum o autor desta carta se refere a ‘Jesus’ usando apenas este nome; ele sempre diz ‘Jesus Cristo’. É provável que o nome Ἰησοῦς tenha sido inserido nesse texto por um copista que tenha feito confusão entre duas abreviaturas de nomes, pensando que KC (κύριος) fosse IC (Ἰησοῦς).”10
Outra evidência interna em favor de κύριος pode ser trazida à baila. Além de Judas nunca usar o nome de Jesus isolado em sua epístola, ou seja, ele sempre usa nomes compostos para o Filho de Deus como “Jesus Cristo” ou “Senhor Jesus Cristo”, Judas também dá indicativos que tende a usar κύριος (Senhor) quando se depara com referências atribuídas a Deus. Por exemplo, ao citar o Livro de Enoque 1.8-12 nos versos 14 e 15 da epístola (também em ambiente de julgamento como Jd. 5), ele troca o uso de palavra “Deus” por “Senhor”. O mesmo pode ter ocorrido na referência a Yahweh no evento da libertação do povo de Israel do Egito onde Judas escreveu “Senhor”. É uma sugestão com melhor grau de razoabilidade que essa variante, onde aparece “Senhor”, seja a mais provável para o texto.
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1 Bíblia de Jerusalém, 8ª Ed. 2012
2 Sociedade Bíblia Alemã. A 5ª edição é publicada no Brasil pela Sociedade Bíblica do Brasil, e, eventualmente, pode ser mencionada como USB5.
3 A Comissão, apesar de apresentar “κύριος” em todas as outras versões do Texto Grego, considera essa palavra com classificação “D”.
4 https://net.bible.org/#!bible/Jude+1
5 Também a English Standard Version (ESV); New Living Translation (NLT) edição de 2015; Christian Standard Bible , edição de 2017.
6 Acerca desse manuscrito as notas introdutórias do USB5 diz “O manuscrito 33 ainda é uma testemunha citada de forma consistente, não devido à sua relevância para a reconstrução do texto, mas porque traz leituras especiais interessantes.” (destaquei), pág. xvi. Certamente, uma dessas leituras se encontra em Judas v.5.
7 Referências de atuação de Jesus no Antigo Testamento são figuradas como, por exemplo, Jo. 8.56 quando diz que Abraão viu o dia de Jesus (certamente uma alusão ao cordeiro preso pelos chifres que permitiu a salvação de Isaque); ou I Co. 10.4 onde se diz que a pedra, que verteu água, era Cristo, aqui, sem dúvida, a línguagem não é de uma atuação pessoal de Jesus.
8 http://www.vatican.va/archive/bible/nova_vulgata/documents/nova-vulgata_nt_epist-iudae_lt.html
9 Variantes Textuais do Novo Testamento de Roger L. Omanson – Sociedade Bíblica do Brasil, 2010, págs. 541 e 542
II Pe. 1.1 “Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que conosco alcançaram fé igualmente preciosa pela justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo.”
Este é mais um dos versos, a exemplo de Tt. 2.13, que tentam buscar como comprovação da suposta deidade de Jesus. Traduções com redações semelhantes tem sido usadas com esse fim, mas é oportuno dizer que não existe unanimidade na tradução do versículo. Por exemplo, a versão católica da Bíblia Sagrada da Editora Ave Maria traduziu: “Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, àqueles que, pela justiça do nosso Deus e do Salvador Jesus Cristo, alcançaram por partilha uma fé tão preciosa como a nossa”. Reconhecendo Deus e o Salvador como seres distintos. Mesmo a Bíblia de Jerusalém que é uma tradução feita por católicos e protestantes, ainda que vertendo o trecho de forma tradicional, informa como primeira nota de roda pé a II Pe. 1.1 a versão alternativa de tradução: “Ou: ‘de nosso Deus e do Salvador Jesus Cristo‘”. Mostrando ser possível as duas versões.
Uma comparação desse verso de II Pedro com outro trecho das Sagradas Escrituras suscitam algumas indagações. Notemos os originais abaixo:
τοῦ θεοῦ ἡμῶν καὶ κυρίου Ἰησοῦ Χριστοῦ. (II Ts. 1.12)
τοῦ θεοῦ ἡμῶν καὶ σωτῆρος Ἰησοῦ Χριστοῦ (II Pe. 1.1)
A única diferença entre esses versos, nesses trechos, não é gramatical. Apenas consta “kyrios” onde na outra consta, exatamente na mesma posição, sôtêros.
Mas, o tradutor verteu de forma diferente, dando sentido diferentes aos versos:
“de nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo” (II Ts. 1.12) ACF
(aqui se identifica dois personagens e suas respectivas qualidades)
“do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (II Pe. 1.1) ACF
(Aqui se identifica um personagem com duas qualidades)
Em linhas simples, poderíamos nos perguntar porque não colocaram o “DO” em II Pe. 1.1, como fizeram em II Ts. 1.12, já que a estrutura é a mesma. Note que se lermos o v.2 de II Pe. 1:“pelo conhecimento de Deus, e de Jesus nosso Senhor”, o apóstolo parece mostrar de forma clara que ele não quis apresentar Jesus como Deus e Salvador ao mesmo tempo no v.1, pois o distingui na sequência imediata no v.2.
Em linhas complexas, a reivindicação de Jesus ser apresentado como Deus e Salvador em II Pe. 1.1 é a mesma de Tt. 2.13 e tem a ver com uma regra inventada (o seu autor diria descoberta) por um inglês, pelos idos de 1800 d.C, chamado Granville Sharp. É mais ou menos como se um inglês declarasse haver descoberto uma regra de sânscrito que nem mesmo os autores dos remotos vedas e os estudiosos daquela língua sonhavam existir. Ou seja, Sharp e seus defensores acreditam ter achado algo que nenhum gramático de grego da antiguidade, em quase 3.000 de origem da língua, postulou.
A suposta regra é, basicamente, o seguinte: Artigo + Substantivo + KAI + Substantivo, indicaria que os dois substantivos se referem a mesma pessoa. Isso é a primeira regra dele (existem seis).
O problema é que se for tomada apenas assim, logo surgem problemas para sua aplicação, porque existiriam uma miríade de exceções que descaracterizaria a regra. Então, ele acrescentou à definição várias restrições: Se um ou os dois substantivos forem plurais a regra pode não se aplicar. Se for nomes próprios, por questões óbvias, a regra não se aplica. Se for referentes a coisas ou lugares a regra não se aplica, Se for numerais não se aplica. Se for plurais semânticos pode não se aplicar e segue um lista de não aplicação.
Na verdade todo o esforço de listar as supostas exceções que são variadas e numerosas é para excluir os invalidadores da regra e tentar mantê-la viva, pois caso contrário cada um desses impedimentos a derrubaria. O problema é que tentaram por em regra aquilo que se define pelo contexto. Isso se percebe porque se plurais, inclusive os semânticos, lugares, nomes próprios e etc, não se encaixam, a razão é simples; pelo contexto se percebe que não poderiam ser a mesma pessoa ou grupo, então, não é a suposta regra quem determina isso.
Depois de toda restrição, pegam as ocorrências onde a “regra” parece funcionar, digo parece, porque depois que se tira todas as exceções possíveis e imagináveis, realmente sobra os casos onde a “regra” parece funcionar, e a apresentam. Em outras palavras, criaram uma “regra” extremamente restrita e com finalidade específica (eu diria Ad hoc): Tentar provar a deidade trinitária de Jesus.
Sharp não esbarrou em uma regra que ninguém antes dele, nos milhares de anos da língua grega havia achado, ele estava procurando um meio de legitimar o dogma da trindade através da gramática, porque não há afirmação bíblica sobre a trindade. Assim, não há imparcialidade na redação da “regra”. Todas as flagrantes objeções linguísticas são postas fora do escopo para tentar legitimá-la.
Mas, ainda que se use a “regra” em seu sentido mais restrito (no “só para isso”), a gosto de seus depuradores, ainda assim, há exceções: Pv. 24.1 (LXX) é um dos casos bíblicos, mas há também na literatura externa. Ou seja, é uma base insegura para se definir aquilo que se deve definir pelo contexto. Certamente ninguém precisa de uma regra para traduzir “ὁ θεὸς καὶ πατὴρ” (II Co. 1.3), que está no arranjo “artigo” + “substantivo” + KAI + “substantivo” por “O Deus e Pai” se referindo ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Não seria uma regra que indicaria ali que os dois substantivos se referem ao mesmo ser. Ninguém antes de 1800 usou a “regra” (ela não existia) e ninguém se confundiu com essa tradução e outras passagens em uma suposta construção Sharp.
Aqui podemos falar também da questão semântica, que é outro problema da regra. Ainda sobre II Co. 1.3: Pai já é uma referência comum a Deus, de modo que ainda que tentem colocar expressões como essa sob a regra, ela é inócua e desnecessária e o texto não depende dela para ser compreendido, pois se elenca designações já conhecidas. É justamente a questão semântica que faz alguns defensores da regra de Sharp admitir correta a tradução “de nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo” em II Ts. 1.12, pois consideram ai a palavra “Senhor” como parte de um nome composto como “Senhor Jesus Cristo”, ou seja, nome próprio composto, o que faria a expressão sair do escopo da regra. Nesse ponto a suposta regra adquire alguma subjetividade, pois “Salvador” também pode ser considerado parte de um nome composto em “Salvador Jesus Cristo”. Essa “particularidade” semântica, ao que parece, é desconhecida pelos mais dedicados apologetas trinitários aqui do Brasil. E essa questão é mais um problema que torna a tal regra insegura, incerta e não aproveitável para o fim ao qual foi criada, pois se considerarmos “Salvador Jesus Cristo” como um termo técnico, um nome próprio composto, a regra deixa de ser aplicável tanto a II Pe. 1.1 quanto Tt. 2.13. A própria expressão “Grande Deus” em Tito, pode ser um termo técnico de identificação da Divindade (Ed. 5.8, Ne.8.6, Dn. 2.45, Ap. 19.17), que também anularia a aplicabilidade da regra ali. E se admitirmos que a palavra “Deus”, de fato, em vários casos adquiri o status de nome, então, não devemos confiar na “regra” por mais de uma razão.
Mas, mas mesmo que admitíssemos os postulados de Sharp como regras válidas, os trinitarianos ao tentar ganhar uma suposta evidência da deidade de Jesus perderiam outras. A sexta regra, por exemplo, elaborada por Sharp, apresenta uma situação ligeiramente modificada da primeira, ela determina que se houver uma construção: Artigo + Substantivo + KAI + Artigo + Substantivo, então, se referiria a pessoas diferentes. Se as regras dele fossem verdadeiras e legítimas, um trinitário ganharia II Pe. 1.1 como um verso que chama Jesus, na visão deles, de Deus e perderia outro que, na visão deles, chama Jesus de Deus, Jo. 20.28 “ὁ κύριος μου καὶ ὁ θεός μου”. O verso de João, “Senhor meu e Deus meu”, está exatamente na construção em que Sharp diria que são pessoas diferentes. Mas, nesse caso, providencialmente, ele e os trinitarianos admitem ser uma exceção à regra.
Os cristoteistas tem usado muito II Pe. 1.11 , cujo texto diz: “a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”, como ponto base de convencimento de que se Jesus está sendo chamado de “Senhor e Salvador” nesse verso, deve estar sendo chamado realmente de Deus e Salvador em II Pe. 1.1, a partir do acolhimento da regra de Sharp, já que o v.11 tem a estrutura requerida (ASKS) por Sharp: “τοῦ κυρίου ἡμῶν καὶ σωτῆρος Ἰησοῦ Χριστοῦ”. Nesse texto, com relação a II Pe. 1.1, há apenas a substituição da palavra “θεοῦ” por “κυρίου”. No entanto, como já dissemos, o contexto deve determinar a tradução, não uma regra que se mostra falha em todas as instâncias. Até porque “nosso Senhor” em em II Pe. 1.11 pode se referir sem qualquer dificuldade a Deus e na segunda parte se referir a Cristo. Isso se vê confirmado em um versículo que também fala de REINO: “Os reinos do mundo vieram a ser de nosso Senhor e do seu Cristo” (Ap. 11.15). Ainda que haja artigo antes de “Senhor” e antes da palavra “Cristo”, o texto prova que Deus é também nítida e naturalmente chamado de “Senhor”, de modo que, em II Pe. 1.11 “Senhor” pode, sem dificuldades, se referir a Deus e o segundo personagem no verso é Jesus.
Por causa desses vários problemas a regra passou quase 200 anos, desde de sua criação, praticamente morta. Poucos davam crédito ou a citavam para tentar validar uma identidade de Jesus com a Deidade. O Dr. Daniel B. Wallace tentou ressuscitar a regra em uma tese de doutorado em 1995 chamada Sharps Redivivus. Nesse trabalho o Dr. Wallace precisou encolher a “regra” ainda mais, ante as provas contrárias, para tentar mantê-la viva. Mas, mesmo seu trabalho de doutorado já foi avaliado e a “regra” continua devendo, já que ele mesmo não conseguiu solucionar todos os problemas conhecidos.
Ainda outra questão é oportuna falar se tudo isso fosse ignorado. A partir de Jo. 1.1, não existe reservas em chamar Jesus de “Deus”. A questão será sempre em que sentido, relativamente a posição do Pai, a palavra polissêmica “Deus” é usada em aplicação a Cristo. Sabemos por Jo. 17.3, nas palavras de Jesus mesmo, que não pode ter o mesmo sentido. Como não tem o mesmo sentido quando é aplicada aos juízes, anjos, reis, governantes e até Moisés.
Tudo isso mostra que a escassez de provas sobre uma requerida igualdade entre Jesus e seu Deus é tão grande que o trinitarismo tem que criar suas próprias provas. Se a trindade fosse uma realidade bíblica, ter-se-ia provas cabais e explícitas, a ausência disto leva a esse caminho que Sharp tomou.
Bem, há outros detalhamentos, mas essa exposição, penso, já dá uma visão panorâmica das coisas que envolvem a passagem de II Pe.1.1 e os problemas da suposta regra.