Em defesa do eterno conceito de Deus como um e único

Mês: maio 2010 Page 2 of 4

Sl. 110.1

O Salmo 110.1 diz: “Disse Yahweh ao meu Senhor: Assenta-te à minha mão direita, até que ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés.”. Veja, a Bíblia não diz “Disse Yahweh a meu Yahweh”, nem disse como é traduzido em nossas Bíblias “Disse Senhor ao meu Senhor”, mas “Disse Yahweh a meu Senhor” (נְאֻם יְהוָה לַאדֹנִי “neum Yahweh ladoni”) e é digno de nota observar que a palavra traduzida nesse verso por “Senhor” nas versões para nossa língua é, em hebraico, “adoni”, e não “adonay”1, a diferença é sutil, mas importante. Adoni é palavra aplicada a homens de destaque e poderio, bem como a anjos e possui a mesma raiz que Adonay; desse fato decorre a confusão que muitos fazem em achar que a expressão “meu Senhor” seja um diálogo de Deus com Deus (?) por desconhecer ou ignorar que ali, no original hebraico, não está escrito Adonay e sim Adoni. É de destacar que essas palavras não são usadas intercambialmente nas Escrituras. Ainda que Adonay possa ser usada também para homens, adoni, cujo número de ocorrências no AT chega a 195 veze, em nenhuma delas é usada para se referir a Deus. Os tradutores costumam traduzir o nome Yahweh por Senhor e mantêm a tradução da palavra “adoni” por Senhor fazendo aparecer “Disse Senhor ao meu Senhor”, no entanto tal versão prejudica fortemente o entendimento dos leitores, fazendo com que o estudante da Bíblia tenha uma ideia deturpada do que o Salmo quer dizer, pois acreditam que a tradução por “Senhor” nesse Salmo são ambas traduções de Adonay o que, de fato, não é verdade. Esse tipo de tradução induziu, por exemplo, o escritor Jefferson Ramalho, que segue outros trinitaristas, a uma conclusão equivocada ao dizer acerca desse Salmo: “No versículo citado acima, o seu autor original possivelmente estava referindo-se a um diálogo de Deus com Deus.2. Mas, ao contrário disso, em uma claríssima distinção vemos que Yahweh está acima daquele a quem ELE dirige as suas palavras, e que é reconhecido como “adoni” Senhor (o título), assim ELE, Yahweh, revela ter a soberania para o autorizar a assentar-se ao Seu lado. Justamente a desigualdade e não a co-igualdade faz com que Yahweh determine que Adoni se assente à sua direita. Vemos esta predição cumprida nas palavras do próprio Cristo ao repeti-las em Mt. 22.44, e corroboradas em Lc. 22.69 “Desde agora o Filho do homem se assentará à direita do poder de Deus.” Isto prova, também, que é um equívoco dizer que quando no NT há referência a Jesus como Senhor, sem usar seu nome é porque se deve tomar a palavra “Senhor” como substituto de Yahweh. Essa ideia de entender sempre “Senhor” como substituto direto de “Yahweh”, decorre do fato dos textos gregos a partir da Septuaginta terem vertido Yahweh por Kyrios (senhor), como ocorre no verso que estamos estudando: “εἶπεν ὁ κύριος τῷ κυρίῳ μου” (eipen ho kyrios tô kyriô) fazendo aparecer Kyrios (senhor) duas vezes. Deve-se, porém, registrar o fato de que o primeiro aqui é referente ao Nome Sagrado (Yahweh) e o segundo ao título Senhor (Adoni). A Jesus se aplica o termo enquanto título de poderio, conforme Ele mesmo atesta em Jo. 13.13 “Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou.” , mas não enquanto nome, como se vê provado pela aplicação de Lc. 22.69, pois quem se assenta à direita de Yahweh não é o próprio Yahweh, mas o Senhor (Adoni, não Adonay), título que foi dado a Jesus pelo próprio Deus conforme se constata em At. 2.36 “Saiba, pois, com certeza toda a casa de Israel que a esse Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.” em cujo contexto, inclusive, o Sl. 110.1 é citado. A propósito, se Jesus fosse Deus já seria Senhor (o título) por natureza e não por constituição de modo que não haveria sentido as palavras de At. 2.36 se considerada a ideia trinitária do “Jesus Deus”.

A palavra “κύριος” (kyrios = senhor) é aplicada a inúmeras pessoas e em diversas situações na Bíblia, provando que o vocábulo não é sinônimo da palavra Yahweh, mas um substituto, não equivalente, por ocasião da tradução do hebraico para o grego. Os vários usos de kyrios pode se perceber por exemplo em:

Donos de propriedades são chamados Senhor, Mt. 20:8.

Donos de casas são chamados Senhor, Mc. 13:35.

Donos de escravos são chamados Senhor, Mt. 10:24.

Os maridos são chamados Senhor, I Pe. 3:6.

Um filho chamou o seu pai de Senhor, Mt. 21:30.

O Imperador romano era chamado Senhor, At. 25:26.

As autoridades romanas são chamadas Senhor, Mt. 27:63.

Mulheres respeitáveis eram chamadas de κυρία “kyria” (senhora), II Jo. 1.1. “Ὁ πρεσβύτερος ἐκλεκτῇ κυρίᾳ…” (O presbítero à senhora eleita…)

O Senhor Jesus sempre fala de Deus na terceira pessoa. Independente de estar falando como Cristo, como Jesus, como Filho, como Homem, como Ressuscitado ou como Glorificado. Sempre, e sempre se referiu a Deus na terceira pessoa, nunca como sendo ele próprio. Pode-se alegar que Yahweh também se referiu a si próprio, como Deus, na terceira pessoa e é verdade! Mas, Ele não deixou de fazer, de forma muito mais abundante e reiterada, referências a si mesmo, como Deus, na primeira pessoa. Se são o mesmo ente, ou substância, era de se esperar Jesus, que também falou de si na terceira pessoa, seguisse a mesma forma de agir e de falar da “Substância”, mas Ele nunca, em situação alguma, afirmou ser Deus.

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1 As Bíblias que traduzem o Sl. 110.1 por “Disse o Senhor ao meu Senhor” o fazem por verterem o nome Yahweh por Senhor, na primeira ocorrência e Adoni por Senhor na segunda ocorrência. Se for lido em uma versão do hebraico transliterado, possivelmente se encontrará “neum Adonay ladoni”, onde aparecerá Adonay em substituição ao Nome Divino e Adoni se referindo àquele a quem Davi chama Senhor, o Messias.

2 Ramalho, Jefferson in Jesus é Deus? – 2008, Editora Reflexão – pág. 152

Versículos trinitários?

EXISTEM?

Os chamados versículos trinitários, ou seja, aqueles que alistam o Pai, o Filho e o Espírito Santo no mesmo texto e que são usados pelos trinitaristas para tentar indicar um suposta trindade, são escassos na Bíblia contra a esmagadora maioria que alistam o Pai e o Filho juntos e em distinção de posição1. Um deles é II Co. 13.13 “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo seja com todos vós. Amém.” Como é possível perceber este versículo em nada diz que Deus seja três, nem indica, ainda que indiretamente, uma consubstanciação entre os personagens citados, mas mesmo assim é usado para se tentar provar a trindade. Ora, se há lógica quando se diz que em II Co. 13.13 os três são o mesmo por estarem alistados juntos, então, deveríamos considerar o mesmo para Pedro, Tiago e João porque também são alistados juntos na Bíblia em Lc. 9.28. Curiosamente os apóstolos e mesmo Paulo não era uniforme na forma de pronunciar a chamada “benção apostólica”2 e nem toda epístola tem um doxologia igual: I Pe. 5.14 “Saudai-vos uns aos outros com ósculo de amor. Paz seja com todos vós que estais em Cristo Jesus. Amém”; Rm. 16.27 “Ao único Deus, sábio, seja dada glória por Jesus Cristo para todo o sempre. Amém”, I Co. 16.23,24 “A graça do Senhor Jesus Cristo seja convosco. O meu amor seja com todos vós em Cristo Jesus. Amém.” e etc. Isso prova que não existia uma forma ou fórmula “trinitária” com muitos alegam, mas que apenas os seguidores de Jesus ora se expressavam de uma forma, ora de outra, sem, contudo, revindicarem ou insinuarem igualdade entre as pessoas listadas em suas doxologias, até porque em I Co. 16.23,24 Paulo se inclui junto a Jesus Cristo e, no entanto, não são o mesmo ente.

Outro versículo dos poucos existentes e por isso mesmo bastante citado é Mt. 28.19 “Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”. Aqui também não se diz que os três são parte de uma mesma deidade. Os mais achegados ao estudo das Escrituras já leram sobre as suspeitas que recaem sobre a redação desse versículo. Segundo alguns críticos textuais a redação original é “Ide, e fazei discípulos de todas as nações em meu nome”, esta forma é, também, encontrada nos escritos de Eusébio de Cesareia antes do concílio de Niceia Após o concílio algumas poucas vezes ele citou como consta na versão hoje utilizada. Mas, se o questionamento da redação for de difícil aceitação, então, que se perceba os exemplos bíblicos acerca do batismo. O que realmente salta aos olhos para os estudantes das ocorrências do batismo nas águas é o fato de que em nenhuma das práticas de batismo registrados na Bíblia se vê o uso da chamada fórmula batismal “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”, ou seja, se, de fato, a ordem foi dada ela não foi cumprida à risca, e, se o objetivo era apenas de mostrar que o batismo ocorreria na autoridade dos três, porque os discípulos não fizerem questão de seguir a mesma ideia?

O batismo tendo como referência Jesus ocorriam já na época de sua pregação enquanto na terra, conforme lemos em Jo. 4.2 “E quando o Senhor entendeu que os fariseus tinham ouvido que Jesus fazia e batizava mais discípulos do que João (Ainda que Jesus mesmo não batizava, mas os seus discípulos)”. Se a pretendida ordem de um batismo em nome de três representantes ocorreu somente na ascensão, em nome de quem batizavam os seus discípulos aos arrependidos antes disso? Se já batizavam em nome dos três, porque não se vê tal prática no registro da sequencia histórica que é o livro de Atos? Ou não se batizava em nome de ninguém e os registros de Atos apenas reflete a desobediência da recomendação “trinômica” dada por Jesus em Mt. 28.19? Se a intenção do registro de Mateus foi apenas dizer que o batismo era em autoridade conjunta dos três alistados, porque não vemos batismo “em nome de Pai” ou “em nome do Espírito Santo” como prática comum dos discípulos, mas apenas usando o nome Jesus?

Sempre que se fala de batismo referindo-se a autoridade ou finalidade da prática, não somente no livro de Atos, mas nas epístolas, está ligado a Jesus e não confirmam a fórmula tríplice do batismo usada pela grande maioria das igrejas de hoje, isto pode ser constado em At. 2.38 “E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo”, At. 8.16 “(Porque sobre nenhum deles tinha ainda descido; mas somente eram batizados em nome do Senhor Jesus)”, At. 10.48 “E mandou que fossem batizados em nome do Senhor. Então rogaram-lhe que ficasse com eles por alguns dias”, (aqui vale uma observação porque alguns talvez queiram ver na palavra “Senhor” em At. 10.48 uma referência a Yahweh, mas no que tange a pregação relativa ao batismo a referência é Jesus conforme se prova em At. 18.8 “E Crispo, principal da sinagoga, creu no Senhor com toda a sua casa; e muitos dos coríntios, ouvindo-o, creram e foram batizados”, ora Crispo como um dirigente da Sinagora não precisava passar a crer em Yahweh, ele era, de uma forma ou de outra, judeu e já cria em Yahweh, mas precisava crer em Jesus, e nesse texto Jesus é intitulado de Senhor. Outros versículos são At. 19.5 “E os que ouviram foram batizados em nome do Senhor Jesus”, Rm. 6.3 “Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte?”, I Co. 1.13 “Está Cristo dividido? foi Paulo crucificado por vós? ou fostes vós batizados em nome de Paulo?” e L 3.27 “Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo.

A expressão iniciada em “no nome…” e não “nos nomes”, tem levantado defensores alegando que a consubstancialidade na Deidade entre os três alistados está expressa ai, mas isso é uma conclusão apressada pois quando se diz “em nome de tal e tal” não se pretende admitir igualdade entre os alistados, mas invocar a autoridade conjunta dos nomeados para legitimação do ato, sem contudo os considerar iguais. Na Bíblia encontramos, por exemplo, em Dt. 18.20 “em nome de outros deuses” ao invés de “nos nomes de outros deuses” e os tais certamente não eram uma poliunidade de deuses consubstanciados. Há também ocorrências bíblicas onde apenas se alistam pessoas se usando a palavra “nome” no singular, como é o caso de Rt. 1.2, que foi traduzido com a palavra nome no plural, mas que no original está no singular: “…o nome de seus dois filhos…” e aqui, certamente, não se requererá, que em Rute 1.2 se esteja falando de um ente composto de dois seres.

Quando se ler em Mt. 28.19 a expressão “em nome … do Espírito Santo”, quem tem a consciência trinitária não se questiona sobre quantas vezes a expressão “em nome do Espírito Santo”, “em nome do Espírito de Deus” ou pelo menos “em nome do Espírito” ocorre dentro da Bíblia. Bem, nas escrituras encontra-se “em nome de Yahweh…” inúmeras vezes como em Dt. 18.22, “em nome de Jesus Cristo”, inúmeras vezes como em At. 4.10, até “em nome de meu Pai” como em Jo. 10.25, mas “em nome do Espírito” é algo inexistente dentro da Bíblia a não ser que consideremos a própria ocorrência de Mt. 28.19 como o único legítimo representante. No entanto os eruditos da própria religião berço do trinitarismo, portanto sem qualquer intenção de tentar diminuir, esconder, ou retirar qualquer passagem bíblica que corrobore a doutrina que eles defendem dentro da mesma Bíblia que usam, testificam Mt. 28.19: “É possível que, em sua forma precisa, essa fórmula reflita influência do uso litúrgico posteriormente fixado na comunidade primitiva. Sabe-se que o livro dos Atos fala em batizar “no nome de Jesus” (cf. At. 1,5 + 2,38 +). Mais tarde deve ter-se estabelecido a associação do batizado às três pessoas da Trindade.”3 essas palavras mostram que a redação de Eusébio de Cesareia, historiador da Igreja e que fez citações dessa passagem Mateus 28.19, provavelmente seja a correta e foi reconhecida como alterada posteriormente pela igreja católica que foi a organização que por muito tempo detinha o domínio sobre o que deveria ou não ser usado na religião cristã.

Há ainda uma relação tríplice em I Co. 12.4,5,6 “Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos”, mais uma vez não vemos qualquer pretensão de consubstanciação, pelo contrário, esta dito no final do versículo que “ é o mesmo Deus que opera tudo em todos”. Tudo surge em Deus que enviou a ambos; o Senhor Jesus e o Espírito Santo. Percebe que não se fala em “Pai”; um possível terceiro, ou melhor, primeiro ente da lista, para então se dizer que Deus é quem opera tudo em todos, como se a reunião dos três fosse esse Deus que opera tudo em todos. Fala-se dos dois, do Espírito e do Senhor e diz que quem opera as coisas neles e em todos nós é Deus.

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1 Várias vezes encontramos na Bíblia expressões “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus” como, por exemplo em II Co. 1.3 “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação” (destaquei)

2 Aspeei porque se costuma chamar benção apostólica as palavra ditas nesse versículo de II Co. 13.13, mas se é, de fato, a Benção Apostólica ela não se repete em lugar algum. Hoje, via de regra, essa redação é usada, em muitas igrejas, mas nos tempos apostólicos não existia uma regra ou uma frase específica para a chamada benção. O curioso é que vários pastores a pronunciam, mas não se reconhecem como apóstolos.

3 A Bíblia de Jerusalém – Edições Paulinas – 1991, pg. 1896, em nota de rodapé a Mt. 28.19.

O que é a trindade?

TENTANDO ENTENDER O CONCEITO TRINITÁRIO

Embora a trindade seja um assunto comumente aceito dentro da maioria das religiões cristãs, no geral os crentes não se dão conta das implicações teológicas e, com mesmo peso, as questões históricas que envolvem o tema. Na verdade a grande maioria tanto de crentes como de não religiosos responderiam se perguntássemos a eles: “Jesus é Deus ou Filho de Deus?” que Jesus é Filho de Deus. Quando se fala em trindade muitos nem sabem exatamente do que se trata, apenas ouvem e preferem não se aprofundar a respeito, pois diz-se que é um mistério insondável, e aceitam esse dogma por fé, por haverem aprendido assim, mas não tem convicção própria desse ensinamento. Outros buscam entender, mas se sentem confusos e vivem eternamente em conflito com seus pensamentos sobre o assunto, por não conseguirem equacionar o que aprenderam de seus ensinadores com o que a Bíblia fala a respeito de Jesus Cristo; há aqueles que tentam justificar a existência da trindade dentro da Bíblia com argumentos teológicos por vezes complexos, abstratos e virtualmente paradoxais. Mas, no geral, a grande maioria dos crentes em denominações trinitárias são unitários funcionais, ou seja, via de regra reconhecem o Pai como Deus acima de tudo.

Deve-se ter claro em mente que a trindade, conforme concordam todos os estudiosos sobre o tema, sejam trinitarianos ou não, NÃO é ensino claro nas Escrituras Sagradas. Não há passagem do Antigo Testamento que indique, sem que se force o texto, que tal conceito seja real. Absolutamente nenhum dos escritores do Novo Testamento ensinaram acerca da trindade. No máximo os estudiosos atuais, a partir dos concílios católicos, presumem deduzir a existência do dogma baseando-se em certos textos tanto bíblicos com extrabíblicos, ou seja, aqueles textos oriundo dos chamados Pais da Igreja, mas, também deve-se registrar que nenhum dos chamados Pais da Igreja que viveram até o II século ensinaram a trindade, como concebida hoje. Atenágoras, se considerarmos verdadeiras as afirmações atribuídas a ele, talvez seja da safra do II século o único que tenha falado mais claramente sobre a questão, mas mesmo assim o pesquisador J. N. D. Kelly registra “todos eles, incluindo Atenágoras, identificavam a geração do Logos e, consequentemente, Sua qualificação ao título de ‘Filho’ não com o momento em que teria sido originado dentro do ser da Divindade, mas como o instante de sua emissão ou expressão com vista aos propósitos da criação, revelação e redenção”1. Os poucos (dois ou três) que usaram o termo, quando muito, o fizeram como indicativo da listagem composta por Pai, Filho e Espírito Santo, em um relacionamento com vistas o plano do Pai, mas jamais intentaram afirmar qualquer consubstancialidade a nível da co-igualdade entre os três. Todos eles se espantariam se vissem, hoje, qual significado deram para essa palavra.

Mas, o que é a trindade? Trindade é o nome dado ao arranjo teológico que define Deus como sendo três pessoas ou hipóstases2. Segundo esse conceito o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, no entanto não são três deuses, mas um e único Deus consubstanciado em três pessoas. Nesse sentido Deus não é um ser singular, mas composto. Ainda segundo esse conceito cada um não é menos Deus que os outros dois e os três juntos não são mais Deus que qualquer um deles individualmente e Agostinho3 confirma essa ideia dogmática ao afirmar que “na verdade substancial, não somente o Pai não é maior do que o Filho, mas que ambos juntos não são maiores do que o Espírito Santo4 A dificuldade de compreensão começa ai. Como pode ser um Deus pessoal e único, se existirem três pessoas que são ELE. Essa abstração é um dos maiores motivos de os trinitarianos serem constantemente acusados de triteístas, mas tal classificação é a última coisa que um trinitariano deseja receber, pois isto o excluiria do monoteísmo ensinado na Bíblia sobre a qual se fundamenta a religião professa cristã. Para resolver esse problema fizeram-se muitos e muitos estudos cujo objetivo era popularizar cada vez mais o conceito e isso durou, literalmente, centenas de anos5 até passarem a fazer uso do termo “substância”, palavra emprestada da filosofia grega e que passou a ser empregada como solução para o triteísmo que o dogma da trindade enseja. Pois se se dissesse que Deus é uma pessoa e três pessoas seria flagrante contradição. Deus passou a ser encarado, então, como algo que lhe tirou a pessoalidade e individualidade coisificando-o. Tal conceito encontra seu melhor defensor em Agostinho que categoricamente diz “Deus é, sem dúvida, uma substância…”6. Esse foi o único caminho encontrado pelos teólogos da trindade e parecem estar satisfeitos com uma definição acerca de Deus que não está na Bíblia. Desse modo podia-se dizer que Deus ao invés de ser uma pessoa era uma “substância” ou “essência” onde três7 pessoas ou hipóstases coexistem ou, como preferem alguns, subsistem8. Esse argumento sofreu inúmeras resistências ao longo de sua formação que, como já foi dito, durou centenas de anos, tanto por pessoas que se opuseram a ele, quanto por pessoas que até concordavam e achavam ser possível uma co-igualdade entre Deus e seu Filho, mas muitos destes últimos defendiam que uma doutrina para ser plenamente bíblica não deveria precisar de argumentos extra-bíblicos, mas foi justamente o que aconteceu, para ser demonstrada de forma o mínimo aceitável. Nesse ponto se verificou a necessidade de influência político-eclesiástica para inibir as resistências e fazer essa crença ser aceita. O paradigma da necessidade da explicitude bíblica de uma doutrina para ela ser considerada cristã foi quebrado e o argumento para aceitar essa nova maneira de entender a Bíblia é que as Escrituras não proviam aos seus estudantes todos os termos necessários para expressar seu conteúdo doutrinário de forma satisfatória. Isso equivale a dizer que para o dogma considerado o mais importante pela maioria dos cristãos a Bíblia sofre de insuficiência, pois não o expressou de forma direta e clara, e carece de termos que o defina de forma plena.

Todos sem exceção dizem que a trindade é um mistério insondável, mas a Bíblia diz: “O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou”. Ora, se a Bíblia diz que Jesus revelou Deus para nós, como pode a revelação que visa esclarecer alguma coisa tornar-se um mistério insondável muito maior, oculto e incompreensível de que no período anterior à essa revelação?

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1 J. N. D. Kelly in Doutrinas Centrais da Fé Cristã, pg. 74

2 Segundo o Dicionário Grego do Novo Testamento de Carlo Rusconi, Ed. Paulus, a palavra grega hipóstase significa “essência” ou “substância”.

3 Aurélio Agostinho, também conhecido como Santo Agostinho de Hipona foi um importante bispo cristão e teólogo. Nasceu na região norte da África em 354 e morreu em 430. Em 395, passou a ser bispo, atuando em Hipona (cidade do norte do continente africano). Escreveu diversas obras, dentre as quais um tratado filosófico sobre a trindade intitulado “A Trindade”. Segundo consta essa obra foi escrita entre 400 e 416 d.C.

4 Agostinho in A Trindade, Paulus Editora, 2ª Edição – 1994, pág. 484

5 Perceba que para tornar e transformar aceitável a ideia de que Deus seja uma composição de três pessoas co-iguais precisou-se, não de poucos anos e nem aconteceu da noite para o dia, mas transcorreram mais de 500 anos quando a questão do “filioque” (o reconhecimento da processão do Espirito como sendo originário do Pai e do Filho, culminando esse entendimento no cisma entre a igreja do oriente e do ocidente) foi “conciliada” apenas pela parte ocidental da igreja. Isto se deu ao fato de a Bíblia em nenhum momento ensinar o dogma trinitário, pelo contrário. Por isso foi preciso quebrar a resistência dos primitivos cristãos e criar um contexto histórico político-eclesial que permitisse a imposição dessa ideia como um dogma.

6 Idem, pág.193

7 Diz-se três pessoas, mas o conceito de “substância” aceita tantos se queira agregar à Deidade. Poder-se-ia, por exemplo, já que não existe qualquer prova de Jesus como sendo o Anjo de Yahweh manifesto no Antigo Testamento, alegar que o Anjo de Yahweh é, na verdade, também uma Pessoa Divina; portanto a quarta pessoa da “trindade”. Desse modo não mais se chamaria trindade mas “quaternidade”. E, se considerarmos, ainda, as conclusões de Agostinho que disse haver Pai, Filho, Espírito Santo e também a união dos três como sendo o Deus Trindade, então já seriam cinco pessoas ou entes na Divindade.

8 Algo que ficou perdido no tempo foi o fato de que o termo “substância” foi um artifício humano para adequar Deus à certa crença, e não passa de um valor atribuído a Deus, motivo pelo qual não se deve tomá-lo como certo ou como palavra final em uma possível “classificação” da Deidade.

Você precisa acreditar na trindade para ser salvo?

Muitos cristãos pensam que não crer na trindade significa não crer no Pai, no Filho e no Espírito Santo, mas não poderia haver um engando maior que este. Um crente unitariano crê tanto no Pai, quanto no Filho e no Espírito Santo, pois assim criam Abrão, Isaque, Jacó, Pedro, Paulo e tantos outros; apenas não crê que os três componham um único Deus como é ensinado explicitamente pelo dogma trinitário. Há os que duvidem e outros até afirmam não haver possibilidade de salvação para quem não acredita na formulação da trindade, mas pode-se propor aos tais uma pergunta extremamente simples, fazendo uso da história bíblica para isso, que consistiria em saber qual dos fiéis personagens bíblico, seja na Antigo ou no Novo Testamento, foi salvo por professar um Deus consubstanciado em três pessoas e, qual deles ensinou a formulação da trindade ensinada hoje como condição para salvação do homem? Ora, se isto não ocorreu quem poderá acusar de erro àqueles que procuram manter a mesma fé dos patriarcas e apóstolos? O que Jesus mesmo diz pertinentemente ao assunto deve nos dar uma pista: “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.” (Jo. 17.3). O Senhor Jesus nos orienta a cremos no Pai como único Deus e nele (Jesus) como o Cristo enviado, essa é a condição para salvação.

Já vimos que o antigo Israel nunca aprendeu de Yahweh, seu Deus, nunca compreendeu dentro das Sagradas Escrituras e nunca professou que Deus fosse três em um ou um em três, ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo.

Pelo Antigo Testamento se sabe que o Messias seria um homem e não o próprio Deus, Gn. 3.15 “E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”: Da semente da mulher. Gn. 22.18 “E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz”: Da tribo de Judá. Gn. 49.10 “O cetro não se arredará de Judá, nem o legislador dentre seus pés, até que venha Siló; e a ele se congregarão os povos.” e, por conseguinte, descendente de Davi. A ideia de um messias descendente humano dos antigos reis de Israel além de ser bíblico é defendido por numerosos, senão todos, eminentes teólogos trinitarianos. No contraponto dessas constatações bíblicas está a completa ausência de alguma informação dentro das Escrituras que informem ser o Cristo o próprio Deus encarnado. Assim, quando na epístola aos Hebreus se diz que todos os grandes patriarcas e profetas “… morreram na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra.” (Hb. 11.13), estes jamais afirmaram ou insinuaram que Deus fosse um triúno e termina por atestar a salvação deles provando de forma inconteste que o conceito relativamente recente que transformou Deus em uma substância composta por três hipóstases, não é, em hipótese alguma, condição sine qua non para salvação dos tementes a Deus, caso contrário todos os personagens bíblicos que serviram a Deus na antiguidade estariam condenados.

O próprio Novo Testamento, onde se diz que por Cristo veio “a graça e a verdade”, prova que não se exige a aceitação do ensino tardio da trindade para sermos salvos, pois em absolutamente nenhum versículo do NT encontramos a recomendação de crermos em Deus como sendo três para obtermos salvação, ao invés disso, em uma clara distinção dEle e Deus, o próprio Filho, Jesus Cristo, nos ensina: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim.” (Jo. 14.1) O Nosso Senhor não diz para cremos nele como Deus, mas cremos nele e em Deus. Dois entes distinto ele e Deus. Nas suas instruções aos seus discípulos Jesus nunca disse ser Deus, nem consubstancial com ELE; nem nas sinagogas, nem aos doze, nem em seus sermões nas terras de Israel, nem na cruz, nem a Paulo em suas manifestações ao apóstolo que testificou ter aprendido dEle; também não o disse nas revelações a João no Apocalipse, pelo contrário, dentro da Bíblia não há qualquer razão ou orientação para buscarmos em crenças formuladas posteriormente ao período apostólico algum conhecimento ou condição adicional para sermos salvos, antes se pede a preservação do que foi aprendido na Bíblia. O Messias disse de forma taxativa “Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre.” (Jo. 7.38), e essa escritura já estava disponível na época em que Jesus falou isso, então, a forma de crer em Jesus não deve apontar para as tardias fórmulas nicenas1 ou capadocianas2 elaboradas muitos e muitos anos após a morte do último apóstolo, mas para o Texto Sagrado.

Alguns reivindicam Is. 43.11,12 “Eu, eu sou o Yahweh, e fora de mim não há Salvador. 12 Eu anunciei, e eu salvei, e eu o fiz ouvir, e deus estranho não houve entre vós, pois vós sois as minhas testemunhas, diz o Yahweh; eu sou Deus.”, dentre outros semelhantes para afirmar que se Jesus não é Yahweh, nosso Deus, não poderia salvar a humanidade, pois o versículo diz claramente que “fora de mim (Yahweh) não há Salvador”, no entanto, essa conclusão é apressada e não considera o contexto bíblico como base para a argumentação. Primeiro porque a Bíblia diz que Yahweh é um, não dois ou três. Leia-se Dt. 6.4. Além disso as Escrituras mostram, por exemplo, Deus dando um salvador ao seu povo em II Rs. 13.5 “E Yahweh deu um salvador a Israel, e saíram de sob as mãos dos sírios; e os filhos de Israel habitaram nas suas tendas, como no passado”, o verso diz muito claramente que Yahweh “deu um salvador”, mas a Salvação continua provindo de Deus porque foi ele quem “deu um salvador”. Não há cabimento afirmar que o “Salvador” constituído esteja propiciando uma salvação que não tenha origem em Yahweh. Assim, se mantém intacta a afirmação de Is. 43.11 e 12, sem contundo forçar a ideia de que esse salvador dado por ele seja ele próprio.

Há várias provas bíblicas que Yahweh constitui o seu escolhido para ser salvador e isso se revela não somente nos dias do antigo Israel como em II Rs. 13.5 , mas, também, em Jesus Cristo Salvador do mundo, e isso não exclui, em absoluto, a origem da salvação que é próprio Pai, Yahweh:

Is. 19.20 “E servirá de sinal e de testemunho a Yahweh dos Exércitos na terra do Egito, porque a Yahweh clamarão por causa dos opressores, e ele lhes enviará um salvador e um protetor, que os livrará.” Mais uma vez vemos que Yahweh, pai de Nosso Senhor Jesus, enviaria um salvador, então, esse salvador traria a salvação de Deus. Ele seria constituído por Deus salvador. A origem da salvação continua a mesma, Deus. O apóstolo João testifica fato semelhante quando diz: “… o Pai enviou seu Filho para Salvador do mundo.” (I Jo. 4.14)

Sl. 28.8 “Yahweh é a força do seu povo; também é a força salvadora do seu ungido.” Deus, Yahweh, é a força salvadora do seu ungido, por isso é que não há salvação fora de Yahweh, pois é ele quem provê a força da salvação que vemos em Cristo Jesus, e Nosso Senhor mesmo cita Isaías em Lc. 4.18 “O Espírito do Senhor é sobre mim, Pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados do coração,” e é daí que decorre a afirmação contida em At. 5.31 “Deus com a sua destra o elevou a Príncipe e Salvador, ….

Is. 49.6 “Disse mais: Pouco é que sejas o meu servo, para restaurares as tribos de Jacó, e tornares a trazer os preservados de Israel; também te DEI para luz dos gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra.” Esse verso também está em conformidade com At. 5.31 e mais ainda com At. 4.12 “E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, DADO entre os homens, pelo qual devamos ser salvos.” Então, será que por causa de uma determinada compreensão paradigmatizada de forma incorreta do que Isaías escreveu Deus estaria impedido/proibido de constituir alguém como Salvador para levar SUA salvação aos homens? Será que esses versículos não são explícitos quanto ao fato de ELE haver constituído um Salvador para levar a sua salvação não somente a Israel, mas também aos gentios?

O Cumprimento se vê confirmado em Lc. 1.69,70 ao ser informado que Deus “… nos levantou uma salvação poderosa na casa de Davi seu servo. Como falou pela boca dos seus santos profetas, desde o princípio do mundo;” Perceba que Deus levantou uma salvação poderosa na “casa de Davi”, ou seja, pela via da sucessão humana, e não a própria Deidade vindo à terra para salvar o povo!

Lc. 2.29,30 “Agora, Senhor, despedes em paz o teu servo, Segundo a tua palavra; Pois já os meus olhos viram a tua salvação,” Muito claramente Simeão orou louvando a Deus agradecendo o fato de ter visto a Salvação dELE. Simeão orou a Deus e não a um possível “menino-Deus” em seus braços, não havia um motivador textual bíblico, cultural ou mesmo subentendido para que aquele velho homem judeu e monoteísta fizesse uma oração a um menino achando que fosse Deus, ele orou a Deus mesmo, o Pai daquela criança e via nela a concretização da salvação de Deus. A compreensão dele é clara. Deus havia cumprido sua promessa enviando a Salvação e não vindo ELE próprio.

At. 13.23 “Da descendência deste, conforme a promessa, levantou Deus a Jesus para Salvador de Israel”. Todos esses versos mostram que não precisamos acreditar em uma “trindade” dentro/na Deidade para sermos salvos, pois claramente se mostra que quem levantou Jesus para Salvador foi Deus, o único que poderia fazer isso por ser o único Salvador, outro não poderia constituir qualquer salvador, pois fora dELE não há salvação.

E acima de tudo “Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim?” (Jo.14.11); logo, a salvação promovida pelo Filho acontece porque ele está no Pai e Dele tudo recebeu. Assim, não é uma salvação externa. Não é a salvação de outro deus, mas do Pai, o único Deus.

Tudo isso prova que não há necessidade de se crer no dogma trinitário para sermos salvos.

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1 Nome originado das formulações surgidas no Concílio de Niceia em 325 d.C, onde se convencionou a igualdade absoluta entre Deus, o Pai e Jesus, o Filho.

2 Nome originado das formulações elaboradas pelos chamados Padres Capadócios: Gregório de Nissa, Gregório de Nazinazo e Basílio de Cesareia. Que estabeleceram a afirmação: “uma substância e três hipóstases” para o conceito trinitário da Divindade.

Arranjos triáticos

SERÁ QUE DETERMINAM A TRINDADE?

Uma mesma palavra repetida três vezes em um texto bíblico não deveria ser reivindicada de implicitude de uma suposta trindade, mesmo que esta palavra seja a palavra “santo”, e, de fato, se considerarmos a forma de se expressar dos escritores sagrados não veremos motivos para isso.

As ocorrência de Is. 6:3 – “Santo, Santo, Santo” e Ap. 4:8 – “Santo, Santo, Santo“, são citadas, pelos trinitários como a intenção nos fazer crer que cada ocorrência da palavra santo indica uma pessoa da trindade: santo=Pai, santo=Filho, santo=Espírito Santo.

O que parece passar desapercebido é que a repetição do termo é uma forma de superlativo absoluto hebraico, que objetiva ênfase e não pluralidade.

Hollenberg & Budde em sua Gramática Elementar da Língua Hebraica, ensinam que a forma repetida de um adjetivo em Hebraico além de lhe comunicar ênfase, também serve como superlativo absoluto, passando “Santo, Santo, Santo” à ser entendido como “Santíssimo”.

Se você é um leitor atento das Escrituras já viu outras ocorrências de repetições em número de três antes, como por exemplo Jr. 22.29: “Terra, Terra, Terra”. Terra=Pai, terra=Filho, terra=Espírito Santo, claro que não! Trindade de terras? A expressão de Jeremias é a ênfase na advertência para se ouvir a palavra de Yahweh. Se houver necessidade de mais evidência sobre isso leiamos, também, Ez. 21.27: “Ao revés, ao revés, ao revés…”

Além desse caso, muitos reivindicam passagens que apresentam o Pai, o Filho e o Espírito Santo como, por exemplo, o polêmico1 texto de Mt. 28.29 “Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;” para mostrar que a Bíblia ensina sobre a trindade. Outras ocorrências são Mt. 3.16 e 17, ou a citação dos três no momento do batismo de Jesus; em II Co. 13.13, tem-se a benção apostólica. Mas, isto precisa ser melhor pesado, primeiro por que não está dito nesses versos que os três sejam um ou que componham, de alguma forma, a deidade; segundo porque arranjos triáticos, são encontrados com outros elementos celestiais sem que contudo sejam uma coletividade na deidade, vemos isto em I Tm. 5.21 “Conjuro-te diante de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, e dos anjos eleitos, que sem prevenção guardes estas coisas, nada fazendo por parcialidade.”, também em Mt. 16.27, Mt. 24.36 e Mc. 8.38 onde se cita Filho, Pai e anjos. É perceptível que nem nesses versos, nem naqueles há qualquer reivindicação de igualdade entre as tríades citadas.

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1 Chamamos de polêmico porque existem informações, principalmente em Eusébio de Cesareia, que a redação original desse verso seja apenas: “Ide, e fazei discípulos de todas as nações em meu nome

Elohim

A PLURALIDADE DE DEUS?

Pelo fato de a Bíblia não apresentar Deus como sendo uma essência e três hipóstases os trinitarianos buscam, dentro da Bíblia, tudo o que for possível para tentar provar alguma pluralidade de pessoas na deidade, e o fazem já com o primeiro versículo da Bíblia: “No princípio criou Deus”. “Deus” nas escrituras hebraicas é אֱלֹהִים “Elohim” que é a forma plural de Eloah, essa última é mais comum nos livros poéticos, especialmente o de Jó.

Os dicionários trazem a tradução de Elohim como significando Deus ou deuses, e, em uma tradução etimológica significa “poderes”, “governantes” ou “forças”. O contexto e os sinais linguísticos determinam o entendimento correto, já que “elohim” é uma palavra polissêmica1. Na questão contextual histórico-teológico tem-se bastante elementos para entendermos a palavra quando aplicada ao Deus de Israel como sendo um único ser e não uma pluralidade de seres.

A primeira implicação de se entender Elohim como uma pluralidade de seres ao aplicarmos essa palavra ao Eterno Deus seria admitir sua tradução como “deuses”, no entanto, essa tradução não revelaria um deus único, mas vários deuses. Admitir isso dentro de uma fé monoteísta seria cair em politeísmo.

A ideia de “deuses” para Elohim é negada pelo critério linguístico quando essa palavra se refere ao Deus de Israel, pois aparece mais de 2.000 vezes e somente em quatro delas o termo que acompanha está também no plural. Todas as outras milhares de vezes os verbos, os pronomes e os adjetivos estão no singular. Inclusive em Gn. 1.1 בְּרֵאשִׁית בָּרָא אֱלֹהִים (Breshit bará Elohim). “Bará” (בָּרָא) é o verbo CRIAR e está na 3ª pessoa do singular, CRIOU.

No que tange à questão teológica vemos a afirmação que o Elohim que fez o céu e a terra é Yahweh, isto pode ser visto em Gn. 2.4 בְּיֹום עֲשֹׂות יְהוָה אֱלֹהִים אֶרֶץ וְשָׁמָיִם “no dia em que Yahweh Elohim fez a terra e os céus”, mas uma vez aplicado o verbo singular “FEZ” confirmando o entendimento que Yahweh é um e não mais que isto. O Universo criado por um único ente é atestado também no Novo Testamento e isso pode ser lido em Ef. 3.9 “… Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo”. Tal constatação é sustentada também pelo texto áureo do monoteísmo bíblico. Dt. 6.4 “Ouve, Israel, Yahweh nosso Elohim, Yahweh é UM”. Aqui não lemos que Yahweh é “um dos nossos Elohim”, mas o “nosso Elohim”. Algumas Bíblias traduzem por “único Senhor”, mas no original está simplesmente “יְהוָה אֶחָד” (Yahweh echad). אֶחָד (echad) é a palavra hebraica para o cardinal UM. Que a palavra Elohim aplicada ao Deus Eterno tem sentido singular é também confirmada em Gn. 35.11 וַיֹּאמֶר לֹו אֱלֹהִים אֲנִי אֵל שַׁדַּי (vayyo’mer lo ‘elohiym ‘aniy ‘êl shadday) “E disse Elohim: Eu sou El Todo-Poderoso”. Este verso mostra que Elohim (um plural) tem significado de EL (um singular) quando se refere ao Altíssimo.

O Prof. Isaías Lobão cita o também professor Klaas Runia, do Seminário Teológico Reformado Holandês, informando que ele “crê que Gn 1:26, indique a Trindade. A fórmula plural de Gn 1:26, possui caráter trinitário; trata-se, segundo ele, não de um plural majestático, como alguns querem, ou de um plural deliberativo, como outros interpretam, visto que isto era totalmente desconhecido dos hebreus.”, mas ambos parecem desconsiderar que os hebreus faziam outros usos dessa mesma palavra e aplicava, também, palavras pluralizadas em outras situações, o que termina por impedir a dedução de trindade nesse substantivo em Gn. 1.1, ou em qualquer outra ocorrência. O termo no plural é usado tanto para referir-se a vários deuses de uma só vez: Gn. 31.30; como a um deus pagão de forma individual: Em I Sm. 5.7b, Dagom é chamado de elohim, já em Jz. 11.24 o elohim é Quemós. Em I Rs. 18.24 Baal é um elohim individual concorrente de Yahweh. A palavra elohim também foi usada para referir-se aos anjos Sl. 8.5 ARA (cf Hb.2.7), e para referir-se a homens, Sl. 82.1,6. O próprio Moisés recebeu de Deus a identidade de Elohim para atuar no Egito. Ex. 4.16; 7.1.

Leiamos, por exemplo, I Sm. 2.25 “Pecando homem contra homem, os juízes o julgarão; pecando, porém, o homem contra Yahweh, quem rogará por ele? …”, a expressão “juízes” é tradução da palavra “elohim”, tanto que há bíblias, como, por exemplo, a Bíblia de Jerusalém que prefere traduzir “Se um homem comete uma falta contra outro homem, Deus o julgará; mas se pecar contra Iahweh, quem intercederá por ele?…”. O simples fato da palavra poder ser traduzida por “juizes” e por “Deus” mostra que não há qualquer implicitude de pluralidade na deidade por causa da palavra em si, pois os juízes eram representantes de Deus e não ELE próprio, e cada juiz não era mais de uma pessoa, de modo que aplicar ou subentender algum “caráter trinitário” em elohim é plenamente arbitrário, pois nenhum juiz de Israel era componente de uma trindade de seres.

A ideia de que haja alguma pluralidade em Elohim só nasceu depois da tentativa de deificação do Filho de Deus, nos primeiro séculos da era cristã. Tal conceito na palavra Elohim não é expressa dentro da Bíblia. Se houvesse alguma caráter plural nela, quando aplicada ao único e supremo ser, então, os escritores sagrados não a aplicaria a outros deuses (I Sm. 5.7b), a anjos (Sl. 8.4,5 com Hb. 2.6,7), demônios ( Dt. 32.17) e até mesmo homens (Ex.4.16; I Sm. 2.25), que sabemos não serem seres pluralizados ou coletivos.

Outro detalhe muitíssimo importante sobre como devemos entender a palavra אֱלֹהִים “elohim” dentro da Bíblia nos é dada pelos tradutores da Septuaginta e os Escritores Sagrados do Novo Testamento, pois ambos traduziram a palavra “elohim”, que é uma palavra plural, não pelo seu equivalente imediato, o plural grego θεοὶ (theoi), mas pelo singular θεός (theos), mostrando que o caráter da palavra quando é associado a um único ser ou ente não é plural ou de pluralidade, mas singular.

Embora já se tenha mostrado aqui que a palavra “elohim” não é usada como termo exclusivo designativo do Eterno e Verdadeiro, o que por si só já eliminaria o requerimento de insinuação de composição plural na palavra quando aplicada a um único ente ou ser, alguns buscam em Gn. 1.26, Gn. 3.22, Gn. 11.7 e Is. 6.8, provas de que Elohim quer realmente denotar um pluralidade de pessoas na Deidade pelo fato de nesses versos constar o verbo ou pronome também no plural. Mas, vale a pena lembrar que apenas 4 (quatro) ocorrências em mais de 2000 (duas mil) aparições dessa palavra surgem esses raros plurais, há quem ache 10 (dez) plurais, mas destes 6 (seis) não teriam sido vertidos para nossa língua. Nesse ponto as opções são; verificar se existe ocorrências similares aplicadas a outras pessoas e se buscar entender contextualmente essas ocorrências ou achar que a exceção dita à regra e passarmos a admitir que esses raros plurais devem ser estendidos para todas as outras 2000 ocorrências da palavra sem plural.

Atentemos, então, para os versículos requeridos e comparemos com outros onde expressões semelhantes aparecem e busquemos perceber, de forma contextual, o que eles significam.

Is. 6.8 “Depois disto ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? …”, compare a Ed. 4.18 “A carta que nos enviastes foi explicitamente lida diante de mim.” Veja que se aquela construção de Is. 6.8 indicar que Adonai é mais de UM Elohim, por causa do “nós”, então, Artaxerxes é, também, por trato de uniformidade, mais de UM homem.

Ainda temos, por exemplo, Gn. 3.22, 24 “Então disse Yahweh Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente … E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida.” Compare com Ed. 7.21, 24 “E por mim mesmo, o rei Artaxerxes, se decreta a todos os tesoureiros que estão dalém do rio que tudo quanto vos pedir o sacerdote Esdras, escriba da lei do Deus dos céus, prontamente se faça … Também vos fazemos saber acerca de todos os sacerdotes e levitas, cantores, porteiros, servidores do templo e ministros desta casa de Deus, que não será lícito impor-lhes, nem tributo, nem contribuição, nem renda.”. Veja que mesmo dizendo “um de nós” em Gn. 3, mais à frente, na mesma narrativa, encontramos “pôs” ao invés de “puseram”, analogamente em Esdras há expressão semelhante, mostrando que essa não é uma construção de indicativo de pluralidade em um único ser, como se costuma requerer. O rei Artaxerxes disse “E por mim mesmo … vos fazemos”, no entanto, ele não era mais de UM homem.

A próxima é o bem citado Gn. 1.26 “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” E vejamos como Daniel se expressa em Dn. 2.36 “Este é o sonho; também a sua interpretação diremos na presença do rei.” Veja que o uso do verbo “diremos” por parte de Daniel não implica, nem indica que Daniel fosse mais de UM homem ou que fosse dizer o sonho ao rei como em um dueto, trio ou coral com alguém. Assim tanto Gn. 1.26 como Dn. 2.36 não mostram qualquer pluralidade do ente falante quando usou o plural em suas expressões.

Quando falamos de nós mesmos, podemos usar intercambialmente o “eu” e o “nós”, e essa forma de expressão não é estranha à Bíblia. Quando uma pessoa fala de alguém que usou esse tipo de interlocução não dirá “vocês disseram algo”, mas “você disse algo”, nem pensará que esse alguém é uma pluralidade, pois não haverá dúvida de se tratar de apenas de UM ser ou ente; seja Deus ou homem. Isto se vê provado nessas passagens listadas. E a Bíblia está repleta de, literalmente, milhares de ocorrências com reconhecimento de que o uso de Elohim, aplicado ao Eterno e Verdadeiro indica sempre Um, Único e Um Só e não um ser plural e nos sugere a necessidade de colocarmos esse verso de Gn. 1.26 sob perspectiva.

Apenas para complementar o que está sendo dito leiamos ainda I Sm. 4.5-8 “E sucedeu que, vindo a arca da aliança de Yahweh ao arraial, todo o Israel gritou com grande júbilo, até que a terra estremeceu. 6 E os filisteus, ouvindo a voz de júbilo, disseram: Que voz de grande júbilo é esta no arraial dos hebreus? Então souberam que a arca do Yahweh era vinda ao arraial. Por isso os filisteus se atemorizaram, porque diziam: Deus veio ao arraial. E diziam mais: Ai de nós! Tal nunca jamais sucedeu antes. Ai de nós! Quem nos livrará da mão desses grandiosos deuses? Estes são os deuses que feriram aos egípcios com todas as pragas junto ao deserto”. Note-se aqui que quem via pluralidade no Elohim de Israel eram os pagãos politeístas filisteus:s “Estes são os deuses que feriram aos egípcios”, e nunca, em nenhum momento, o próprio povo de Elohim O entendia como um ser plural.

“O doutor William Smith da Universidade de Londres, um século atrás, foi descrito como o ‘mais eminente lexicógrafo do mundo de língua Inglesa’. A seguinte afirmação encontra-se no Dicionário Bíblico que o doutor Smith editou: “A forma plural Elohim tem dado origem à muita discussão. A ideia fantasiosa de que refere-se à trindade de pessoas na Divindade, dificilmente encontra agora algum partidário entre eruditos. Ou é o que os gramáticos chamam “plural de majestade” ou então denota a plenitude da força divina, a soma de poderes revelados por Deus2.

Lembremos ainda que a Bíblia diz em I Jo. 4.24 “Deus é Espírito”. Se a palavra “Deus” abarcasse um pluralidade de pessoas em Deus, então o Pai é Espírito; o Filho é Espírito Vivificante e o Espírito Santo também é Espírito, desse modo precisaríamos esperar que a Bíblia nos dissesse “Deus ‘é’ EspíritoS” ou “Deus são Espíritos”.

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1 Polissemia é o nome dada a propriedade que uma palavra possui de apresentar mais de um significado ou sentido sem que, necessariamente, os mesmos sejam opostos ou excludentes.

2 Apud Smith, William. “A Dictionary of the Bible” Philadelphia: American Baptist Publication Society, 1863, pág.. 216

ECHAD e YACHID

UM ARGUMENTO INÓCUO

Em dias relativamente recentes surgiu a ideia, entre algumas cristãos conhecedores do hebraico, que quando Deus disse que era “UM” em Dt. 6.4, Ele não quis dizer exatamente “UM”, e que o termo original tem significado de “unidade composta”.

O argumento se baseia no estudo das palavras אֶחָֽד = Echad e יָחִיד = Yachid, que pensam significar, respectivamente, “unidade composta” e “unidade absoluta”. Para eles em Dt. 6.4 onde aparece a palavra Echad (UM), para significar unidade absoluta deveria constar Yachid. Mas, embora Deus possa se manifestar da forma que Ele quiser, não podemos concluir que Ele o faça de forma plural por dedução dos conceitos de אֶחָֽד ou יָחִיד. A própria Bíblia não abona o entendimento que יָחִיד (Yachid) deva ser entendido como “unidade absoluta”. Observe-se que Isaque é classificado como único filho de Abraão em Gn. 22.2. “E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque…” Mesmo sendo usado Yachid, no original hebraico, ele não era, absolutamente, o único. Abraão tinha outros filhos: Ismael, por exemplo, Gn. 16.15. Mais velho que Isaque 20 anos, além de filhos de sua velhice com suas concubinas Gn. 25.6. O fato de Isaque ser chamado de ÚNICO se explica porque unidade absoluta não é o conceito da palavra יָחִיד (Yachid), podendo significar além de único, sozinho; abandonado, etc. Usam, também, na tentativa de confirmar o que pretendem, Pv. 4.3, mas este, de igual modo, não confirma o conceito pretendido, pois se reconhecermos Salomão como o escritor do capítulo 4, ele poderia ser o único de sua mãe, mas não era o único de seu pai, por aí, também, não teríamos a unidade absoluta requerida pelos argumentadores. Ademais o verso diz “único em estima”, o que abre margem ao entendimento de que se a mãe dele tivesse ou viesse a ter outros filhos, somente ele seria o de estima de sua genitora. Tem-se em Jr. 6.26, outro versículo que costumam citar, mas nesse caso é o valor único do filho e não o fato de ser um filho. A intenção não recai na quantidade, mas no valor de ser único. Por isso os LXX utilizaram ἀγαπητός (agapeto) “bem-amado” para verter יָחִיד (Yachid).

יָחִיד contextualmente é apresentada como uma palavra que ressalta o indivíduo, não uma individualidade, ou quantitatividade.

Por outro lado אֶחָֽד (echad) tem haver com quantidade propriamente dita, sendo ela mesma a palavra hebraica para o número cardinal “1” (UM), assim não me parece própria a ideia de que devêssemos esperar em Dt. 6.4 a palavra יָחִיד (yachid) tanto que a Septuaginta em Dt. 6.4, traz a palavra εἷς “um” (UM masculino) no lugar de seu equivalenteאֶחָֽד.

Outro versículo requerido, desta feita, para reivindicar unidade composta, para o termo Echad, é Gn. 2.24 “Portanto deixará o varão o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma só carne.” Mas, observemos que o texto está mais para linguagem figurada, posto que somente figurativamente podemos entender “uma só carne” referindo-se a dois corpos físicos, ou esteticamente, no ato da relação sexual. “Tornar-se” unidade composta tomando como base seres físicos só se admite se fizermos uma análise muito superficial dessa ideia. Imaginemos agora mais detalhadamente: Um homem e uma mulher, duas unidades fisicamente distintas e literais, casam-se e tornam-se uma só carne. Se o sentido não for figurativo, então, forçosamente teremos que entender que para tornar-se unidade composta, seriam quebradas as leis da física, pois dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo; criando um novo ser, um hermafrodita: homem e mulher em “uma só carne”, e se o sentido é, de fato, figurado, então, essa passagem de Gênesis não serve como ponto de apoio correlacional à Dt.6.4 como requerido pelos defensores do argumento trinitário. A insistência vem também através da leitura de I Co. 6.16,17, mas, nesse caso, o verso 16 fala do pecado da prostituição quando um homem “torna-se um” com a meretriz; e no seguinte se informa que ao ajuntar-se com o Senhor o homem se torna um mesmo espírito, assim, ou o sentido é diverso daquele requerido pelos defensores da pluralidade composta de Echad nesses versos (Gênesis e I Coríntios), ou então Deus não é apenas uma trindade, mas uma poliunidade; muitos milhares de pessoas seriam um Espírito com o Senhor: “Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (ARA). Nesse pormenor de I Coríntios, não estou opinando, mas, apenas questionando.

Destaque-se Cantares 6.9: “Porém uma é a minha pomba, a minha imaculada, a única de sua mãe, e a mais querida daquela que a deu à luz …” Tanto a palavra “uma”, quanto a palavra “única” é tradução de אַחַת, uma forma feminina da palavra אֶחָֽד e como se poder perceber, não podemos requerer “unidade composta” nessa filha única, e, não se pode negar que apenas e somente uma é a amada que Salomão ali.

Outro versículo que mostra bem o engano do argumento que afirma ser אֶחָֽד (Echad) a palavra exata para designar uma “unidade composta” é Dt. 17.6 “Por boca de duas testemunhas, ou três testemunhas, será morto o que houver de morrer; por boca de uma só testemunha não morrerá”. Pela boca de uma só testemunha ninguém deveria ser condenado. “Uma só” ali é אֶחָד1 e, sem dúvidas, essa única testemunha não é uma composição de testemunhas; nem vários entes em uma só testemunha ou coisas do gênero. Pelo contrário, a ideia do contraste numérico é inconfundível; é absolutamente UM. Tanto aqui quanto em Dt. 6.4 onde a contraposição é com a quantidade de deuses que fazia parte do politeísmo pagão das nações que cercavam Israel por todos os lados. Certamente não era pretensão da Inspiração Sagrada, e seria mesmo um contrassenso, informar que a pluralidade divina das nações pagãs era além de errada, pecado; e em seguida ensinar que aquele que inspirou isso é também um composto plural, mudando apenas a fórmula conceitual dessa “composição”.

Assim, para fins de argumentação de “unidade composta” ou pluralidade em Deus, a base de Echad e Yachid é nula. Devemos atentar para o que o texto quer dizer em seu contexto, e no caso de Dt. 6.4, se considerarmos a nação rodeada por nações politeístas, Deus não daria a Israel, uma informação que causasse mais confusão que esclarecimento. Deus não diria para ele não crerem na quantidade dos deuses das nações para se revelar ele mesmo como sendo mais de um. Não há lógica nisso. É nítido a ideia do contraste entre a quantidade de entes “divinos” das nações pagãs e o um e único Deus de Israel. Então, não há razão plausível para se crer que a afirmação de que Yahweh seja “UM” quantitativamente literal, não tenha sido a intenção do inspirador da frase.

1Outro exemplo muito claro da unidade absoluta usando אֶחָד (echad) é Ec. 4.8 “um que é só, e não tem ninguém, nem tampouco filho nem irmão;

I Jo. 5.7

I Jo. 5.7Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um.” Este verso, conhecido com a Comma Johanneum (a cláusula Joanina), também conhecido como “As Três Testemunhas Celestiais”, seria o único que “apoiaria” explicitamente a doutrina da trindade. A bíblia Almeida Corrigida contém o texto, já a Almeida Atualizada não o contém, e isto tornou-se objeto de discussão entre os defensores do Textus Receptus (TR), base para a Corrigida, e os defensores do Texto Crítico (TC), base da Atualizada. A evidência textual aponta para a rejeição da passagem “no céu, o Pai, a palavra, e o Espírito Santo: e estes três são um” por não constar nos manuscritos gregos mais antigos. Mas, independente do texto crítico cunhado por Westcott e Hort, com base nos manuscritos Aleph (Sinaiticus) e B (Vaticanus), que muitos consideram corrompidos (e não se pretende aqui defender o criticismo, ainda que haja o princípio da probabilidade intrínseca), omitir a Comma Joanina, devemos nos ater a história dessa possível inserção e concluir, baseado nos fatos constatados, se realmente é uma inserção ou não! Para isso vale a pena ler a declaração do Dr. Norman Wilbur Pickering que embora seja um defensor da trindade e do TR1 atesta “…99% dos MSS gregos não trazem as ‘três testemunhas celestiais‘”. Apenas 8 (oito) manuscritos gregos, em um universo de aproximadamente 6.000, segundo informa o aparato crítico do Novo Testamento Grego da United Bible Societies e outras fontes secundárias, contêm a Comma. São eles: 61 (Códice Montofrianus) do século XVI; 88 (uma variante do Códice Regius de Nápolis [XII]) do século XIV; 429 (Mss em Wolfertüttel) do século XIV; 629 (Mss no Vaticano) do século XIV/XV; 636 (Mss em Nápoles) do século XV; 918 (Mss em Escorial, Espanha) do século XVI; 2473 do século XVII e 2318 (Bucareste, Romênia) do século XVIII. Vale a pena ressaltar que em apenas quatro dos oito o texto não apace como nota marginal, ou seja, se excluirmos os manuscritos em que a Comma não aparece no meio do texto bíblico, então, o número cai mais ainda, e todos são posteriores ao seculo XI, ou seja, no mínimo 1.000 (mil) anos depois de João haver escrito a epístola original; e o último deles é extremamente recente, do século dezoito. Há quem ignore o fato de que a evidência da escassez e recenticidade dos manuscritos gregos testemunham fortemente em desfavor da autenticidade do trecho, e apelam para Thacius Cecilianus Cyprianus, ou simplesmente Cipriano, nomeado bispo de Cartago em 248 d.C. Autor de “De Catholicae Ecclesiase Unitate” (A Unidade da Igreja Católica), e que tem como um de suas máximas a expressão: “Você não pode ter Deus para seu pai, se não tem a Igreja como sua mãe”. O que algumas pessoas não sabem é que Cipriano foi seguidor apaixonado das ideias de Tertuliano, ainda que tenha evitado se referir ao nome de seu “mestre” por conta da saída dele da igreja “oficial” para abraçar o Montanismo2, e por ele mesmo, Tertuliano, conta-se, haver depois saído de lá e fundado um movimento religioso próprio, que ficou conhecido como Tertulianismo. Jerônimo atesta essa filiação entre Cipriano e as obras de Tertuliano em seu livro De Viris Illustribus (Sobre Homens Ilustres)3. Informa que esse o classificava de mestre e estava familiarizado com sua obra. Como se sabe Tertuliano foi o primeiro a usar o termo “trindade”, e seus escritos oscilavam entre o subordinacionismo característico de todos os escritores cristãos até o segundo século, e a unidade da substância, que embora tendo conotação diferente daquele assumido em Niceia, começava a surgir enquanto ensinamento teológico ainda que concebida em graus de existências por esse teólogo, por conta dessa variação a teologia dele é considerada confusa ou ambígua. Embora se diga que Cipriano tenha falado, em sua época, a frase que compõe a Comma, não se pode afirmar que ele o tenha feito por conhecimento de algum manuscrito bíblico em grego, pois nem Tertuliano, de quem foi seguidor, que falava tanto latim quanto grego citou ou fez menção a frase, nem mesmo em sua obra contra Praxéas onde apresenta o dogma trinitário. Também Novaciano que escreveu um tratado sobre a trindade e foi contemporâneo de Cipriano, e igualmente leitor de Tertuliano, não a conhecia. A inexistência de manuscritos gregos que contenham essa construção no período em que viveu o Bispo Cipriano atesta que ele não o fez baseado em algum texto inspirado. Na verdade há quem afirme que Cipriano é o autor da frase por influência das ideias de Tertuliano, cunhada em uma de suas homílias e mais tarde usada por um copista como nota marginal nos manuscritos latinos posteriores e depois inserido no corpo do texto joanino. Isto parece estar ainda mais evidenciado quando se descobre que nem mesmo os manuscritos da Vulgada Latina anteriores ao ano 800 contêm a Comma. Vale lembrar que Cipriano era Bispo latino, e pelo que se vê ele não leu nem em manuscritos gregos, nem em manuscritos latinos aquilo que se atribui a João em sua primeira epístola. Outra suposta citação das “três testemunhas celestiais” é vista em Cassidoro mais de 200 anos depois de Cipriano. Vale lembrar que enquanto isso os chamados “pais” da igreja estavam debatendo a questão cristológica de forma intensa, e o fizeram sem qualquer menção ao trecho referenciado como que atestando sua inexistência. Assim, do ponto de vista historiológico a Comma Joanina partiu de uma nota marginal em um manuscrito latino, vindo a fazer parte em manuscritos subsequentes da Vulgata, já tardiamente passando, na sequência, para um texto grego posterior. É de se destacar que ela também não consta em versões antigas do Novo Testamento como a siríaca, a armênia, copta, árabe, etíope e outras. A Bíblia de Jerusalém, que é uma produção conjunta de ramos trinitários do cristianismo (catolicismo e protestantismo) teria valorizado sobremaneira o trecho se ele fosse, de fato, verdadeiro, mas, ao contrário diz em nota de rodapé acerca desse verso que “O texto dos Vv. 7-8 está acrescido na Vulg. de um inciso […] ausente nos antigos mss. gregos, nas antigas versões e nos melhores mss. da Vulg., o qual parece ser uma glosa marginal introduzida posteriormente no texto

O próprio Textus Receptus elaborado por Erasmo de Roterdã, a partir dos textos gregos disponíveis, em sua primeira edição de 1516 não traz, também, a Comma Joanina, nem mesmo na segunda edição que começou a circular em 1519, e somente foi incluída na edição de 1522, por pressão de religiosos da época, que diga-se de passagem já viviam em um mundo completamente romanizado e trinitário. E, embora o tenha feito, os registros informam que Erasmo o fez com ressalvas e sem confiar na autenticidade do único manuscrito grego que lhe foi apresentado constando a Comma, o manuscrito catalogado sob número 61. A própria datação do manuscrito apresentado a Erasmo mostra que ele é contemporâneo do erudito, ou seja, sem valor histórico para finalidade de inclusão na obra de Erasmo. Portanto, percebemos que se o Texto Crítico fosse elaborado na época das primeira e segunda edições do Textus Receptus, teriam ambos, de forma idêntica, o texto de I João 5.7; sem as “três testemunhas celestiais”. De modo que não é o TC que determina o uso ou não da Comma Joanina, mas os fatos históricos que testemunham em seu desfavor. Então, se o primeiro manuscrito grego que se tem notícias que o contém data de mais de 1000 (mil) anos depois de Cristo; o primeiro manuscrito latino que o contém data do ano 800 (oitocentos) depois de Cristo; se as antigas versões do Novo Testamento para outras línguas não o contém e esses trecho não aparece nas discussões teológicas que envolveram o tema durante séculos, principalmente dos primeiros séculos, como pode ser escrito original de João?

Alguns alegam que se retirada as “três testemunhas celestiais” de I Jo. 5.7, produz-se um erro gramatical, mas isso (o erro gramatical) não é incomum nos textos gregos de João, nem nos textos bíblicos de um modo geral, até porque os escritores tinham graus de conhecimento diferentes da língua o que torna a possibilidade de erro real, além disso alguns deles eram servidos por amanuenses. Comprovando a realidade da imperfeição gramatical em determinadas passagens bíblicas o Dr. Russel Champlin registra acerca do Apocalipse: “O grego ali usado é próprio de um autor que falava o aramaico (sic), e que adquiriu o grego como segundo idioma. Há muitos erros gramaticais no original”. A cerca do evangelho de João o mesmo autor diz: “alguém submeteu o livro a uma revisão bem completa da linguagem4. A esse título, temos coisas incomuns também em outros lugares do N.T como, por exemplo, três substantivos femininos reunidas num plural neutro em I Co. 13.13, ou em Ap. 1.13 o uso de “μαστός” (mama ou peito, donde temos mastologia) aplicado a Jesus. A mesma palavra é usada em Lc. 11.27 “Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que mamaste.”; ao invés de κολπός (kolpos), seio, peitoral, como em Jo. 13.23. Há ainda casos em que um substantivo feminino foi masculinizado, só para citar alguns exemplos. Assim, também isso não é argumento em favor da Comma Joanina.

1Pickering, Dr. Norman Wilbur in Qual o Texto Original do Novo Testamento

2Montanismo – nome dado ao movimento religioso fundado por Montano. Caracterizava-se pelo ascetismo e a crença na atualidade dos dons Espirituais e adotava uma linha apocalíptica.

3Esta obra elencou 135 homens ilustres do cristianismo e tinha como objetivo mostrar que nesse meio de fé haviam também pessoas instruídas, pois uma antiga acusação que incomodava alguns cristãos era que todos eram ignorantes.

4Apud Chaplin, R.N. In Enciclopédia da Bíblia, Teologia e Filosofia. Ed. Candeia, São Paulo – 1995, pág. 544.

Cl. 2.2

Cl. 2.2 – “… para o pleno conhecimento do mistério de Deus-Cristo”, este versículo é usado inclusive por sabelianos ou modalistas, e é interessante porque na Almeida Corrigida se percebe um “-” ligando a palavra “Deus” a palavra “Cristo”. Nem mesmo Jerônimo, católico, que compôs, a partir de textos antigos latinos e gregos, uma versão bem antiga da Bíblia, mas já em um mundo que havia adotado o trinitarismo como ortodoxia, em latim, chamada Vulgata Latina, entendeu desse jeito, ele escreveu: “… plenitudinis intellectus in agnitionem mysterii Dei Patris Christi Iesu” e o Pe. Antônio Pereira de Figueiredo assim traduziu “… uma perfeita inteligência, para conhecerem o ministério de Deus Pai, e de Jesus Cristo”. Do texto grego o final do verso a TEB traduziu: “… do mistério de Deus: Cristo”, a BJ, simplesmente: “…do ministério de Deus”, a Bíblia Pão Nosso: “…o mistério de Deus, Cristo”, a Bíblia Ave Maria: “… o mistério de Deus, isto é, Cristo”, a CNBB: “… o mistério de Deus, que é Cristo”. As citações de Bíblias católicas são para mostrar o entendimento do verso por quem não tem interesse em negar a trindade. A própria ACF verte para “… e enriquecidos da plenitude da inteligência, para conhecimento do mistério de Deus e Pai, e de Cristo”, Se vê claramente pelo testemunho das versões acima que esse texto da Bíblia não identifica um “Deus-Cristo” ou um “Cristo Deus”, mas que Cristo é o mistério de Deus, revelado pela via da plenificação de nossa inteligência. Esse verso é mais um que está caindo, ou mesmo já caiu em desuso na defesa da trindade.

I Tm. 3.16

I Tm. 3.16. A versão Almeida Corrigida e Fiel, traz assim o versículo: “… Deus se manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória.” Este foi usado por muitos e por um longo tempo, e em alguns ciclos ainda é, como um dos textos que confirmavam a crença de que Jesus é o próprio Deus Eterno. E aqui temos um fato curioso que tem haver diretamente com os originais gregos, pois outras Bíblia trazem: “…Aquele que se manifestou em carne, foi justificado em espírito, visto dos anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, e recebido acima na glória”. Como é sabido o Novo Testamento foi escrito em grego, mas os autógrafos, ou seja, os textos feitos diretamente pelos apóstolos ou seus escribas não existem mais, ao menos que se saiba, e o que há são milhares de cópias das cópias, em sua maioria fragmentos de partes do NT. Quando um manuscrito ia envelhecendo e se desfazendo outro era feito para ocupar seu lugar, e outros eram feitos para suprir o aumento do número de ekklesias que demandavam mais cópias para leituras públicas nas congregações. Nesse processo de cópia existia inúmeras dificuldades, dentre elas o material que era caro e escasso, então, para se ganhar espaço e tempo, muitas vezes os copistas costumavam abreviar os chamados nomina sacra (nomes sagrados) e termos mais usuais. Por exemplo, uma das formas de abreviar o nome de Jesus (ΙHΣΟUΣ) era “ΙΣ”; Deus (ΘEΟΣ) se abreviava “ΘΣ”. Foi justamente a possibilidade de abreviações desse tipo que gerou traduções tão diferentes para esse versículo. Ocorre que enquanto “ΘΣ”, abreviação de “Deus” (o sigma também pode ser escrito como um “C” no final das palavras ), “ΟΣ” é o pronome grego “aquele” ou “quem”. Se percebe, rapidamente, a semelhança entre os dois grupos de letras gregas, sendo a diferença entre a abreviação e o pronome apenas um traço horizontal na primeira letra. Costumava-se colocar um traço sobre as letras quando se pretendia identificá-las como uma abreviação, isso é conhecido atualmente como barra-de-contração. Na multidão de cópias feitas dos textos gregos, esse fenômeno aconteceu em I Tm. 3.16. Algumas cópias trazem “ΘΣ” e outras “ΟΣ”. O problema será, então, saber qual é a versão correta. O primeiro que se dispôs a falar e a expor os problemas com a variante “ΘΣ”, em épocas recentes, mesmo sabendo que suas conclusões soariam como afronta a ortodoxia foi o diácono da Igreja Reformada, Johan J. Wettstein, que em 1715 ao ter contato com um antigo manuscrito da carta a Timóteo, percebeu que o traço sobre as letras da suposta abreviação nessa passagem de Carta foi feito, nitidamente, com uma tinta diferente do resto do texto, indicando uma alteração intencional.

Documento examinado por Johan J. Wettstein 

ITm3_16

(Crédito da imagem http://images.csntm.org/Manuscripts/GA_02/GA_02_0123a.jpg)

Ele percebeu também que a linha que atravessava a primeira letra dando a entender que seria um theta, na verdade, foi produzida por um borrão vazado desde o outro lado do documento. A conclusão inevitável foi que ali se travava de “ΟΣ” ou “ΟC” e não “ΘΣ”. No entanto há trabalhos que tentam mostrar o contrário em textos onde não aparecem nem o traço que caracteriza o “Θ” (theta), nem a barra-de-contração “    ” indicando ser a variante “ΟΣ”. O que teria ocorrido, segundo esses defensores, foi o desaparecimento, por efeito do tempo, desses traços em determinado manuscrito. Tudo isso, tem haver com qual dos manuscritos se vai considerar para as conclusões. Nesse ponto vale a pena uma análise, ainda que breve, que permita ao leitor mensurar a questão e construir seu próprio julgamento a respeito.

Quando falamos de “ΘΣ” nessa passagem de Timóteo estamos referenciando o Texto Receptus (TR) e quando falamos de “ΟΣ”, estamos falando do Texto Crítico (TC). Os defensores da variante constante do TR invocam a legitimidade de “ΘΣ” pela quantidade de manuscritos que a contém, estima-se cerca de 600. É, de fato, um bom número de testemunhos. No entanto, a recenticidade desses testemunhos enfraquece esse argumento, pois se um ou dois copistas alteraram o texto de “ΟΣ” para “ΘΣ” por suas convicções trinitárias, e em um ambiente eclesial já completamente trinitário passou a ser produzidas copias do texto com essa alteração, então, todas as cópias subsequentes (ainda que fossem 1000 ou 10.000) que a contém estão apenas reproduzindo o erro dos copistas anteriores. Deve-se observar que praticamente todos os manuscritos que trazem o texto conforme está no TR são cursivos, e, os cursivos têm todos suas existências a partir do século IX, quando os cristãos, já há muito tempo, estavam subordinados a Igreja Romana e a grande maioria das cópias dos manuscritos eram produção exclusiva daquela Igreja. Assim, a busca deve ser feita não pela quantidade de manuscritos gerados dentro do seio de uma igreja trinitária que já era aquela altura a dominante Igreja Católica Apostólica Romana, mas recuarmos o tanto quanto possível no tempo, na investigação de como teria surgido a variante em estudo.

As duas teorias já foram listadas: 1) O grupo “ΘΣ” teria perdido, pelo efeito do tempo, o traço superior e o traço que caracteriza o Theta ou um copista teria apressada ou descuidadamente omitido justamente esses dois traços gerando a variante “ΟΣ”. 2) A teoria contrária afirma que alguns copistas alteraram o trabalho de outros acrescentando deliberadamente por influência teológica o traço característico da barra-de-contração e o traço no centro do “O” (ômicron) transformando-o em um “Θ” (theta). Aqui já dá para atribuir algum peso a razoabilidade das teorias. Qual seria o fato mais fácil de acontecer? O tempo apagar dois traços de uma letra e não apagar a letra? Um copista esquecer dois traços em um mesma letra? Ou um copista colocar dois traços no conjunto de letras em um manuscrito pré-existente?

No livro Qual o Texto Original do Novo Testamento, o Dr. Norma Wilber Pinkering reconhece que “A hipótese de ambas as linhas se desvanecerem, como aqui no Códice A, é presumivelmente um evento infrequente. A hipótese de um copista inadvertidamente omitir ambas as linhas também seria um evento infrequente, presumivelmente, mas deve ter acontecido pelo menos uma vez, provavelmente bem cedo no segundo século e em circunstâncias que produziram um efeito que se propagou amplamente.” Aqui se percebe que mesmo defendendo a leitura “ΘΣ” o Dr. Pinkering reconhece ser muito difícil que o tempo tenha apagado dois traços da letra, um em cima e outro no centro, sem ter, também, apagado o restante da letra, de igual modo considera difícil um copista omitir ambas as linhas ao mesmo tempo, mas, mesmo reconhecendo ser infrequente e apenas presumível a suposta alteração de “ΟΣ” para “ΘΣ”, ele rejeita “OΣ” alegando que seria uma leitura grega aberrante, pois, segundo ele, soaria estranho “o mistério … quem”, atribuindo a essa palavra um único significado, nesse caso reconhecendo apenas “quem” como tradução, ignorando desse modo os outros significados dessa partícula grega conforme atesta os léxicos: “aquele” ou “o que1 Como já dissemos é possível constatar por exame grafológicos e de material que em alguns manuscritos antigos houve o acréscimo posterior dos traços que mudam a palavra atestando a fraude.

Os manuscritos mais antigos que trazem “ΘΣ” são o Ac (séc. V), C2 (séc. V). Essa leitura é atestada por Dionísio, Apolinário, Deodoro, Gregório de Nissa, Crisóstomo, Teodoreto e duvidosamente Dídimo.

Os manuscritos mais antigos que trazem “ΟΣ” são o א (séc. IV), A* (séc. V), C* (séc. V). Essa leitura é atestada por Orígenes (lat), Dídimo, Epifânio, Teodoro (lat), Cirilo e Jerônimo O manuscrito D* (séc. V) traz “Ο”. Essa leitura é atestada por Severiano, Teodoto de Ancira, Vitorino de Roma, Hilário, Ambrosiastro, Pelágio, Agostinho, Quodvultdeus e Varimadum.

É fácil perceber que há manuscritos iguais nas duas relações, com um indicativo sobrescrito. O carácter sobrescrito atesta a qualidade do manuscrito existente. O (*) indica que, conforme está descrito no aparato crítico do Novo Testamento Grego da Deutsch Bibelgesellschaft e editado pela Sociedade Bíblica do Brasil em 2008, essa é considerada a leitura original do texto e o (2) ou (c) indica que é a leitura de um corretor. O manuscrito א (Aleph) do séc. IV atesta como original o “ΟΣ”.

Assim, os peritos comprovaram a alteração neste e em quatro outros antigos manuscritos, optando, desse modo por “OΣ” como sendo o termo correto e a tradução “Aquele que se manifestou em carne...” como a melhor tradução do versículo, e isto é confirmado também pela evidência interna, pois é inconcebível e sem sentido Deus precisar ser “justificado no Espírito”. Além de não ser do estilo de Paulo a fusão do Pai, a quem ele sempre chama de Deus com o Filho, a quem ele sempre chama de Senhor. O Pe. Matos Soares, trinitário, que traduziu sua Bíblia do Latim, ou seja, de um texto que não sofreu a crítica textual dos elaboradores do TC, concorda com isso e assim traduz o verso: “… grande é o mistério da piedade, que se manisfestou na carne, que foi justificado pelo Espírito, visto pelos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, exaltado na glória.” Por conta dessas constatações esse versículo não está mais sendo usado como defesa trinitária. Além do mais não se vê nenhuma citação desse verso na controvérsia do IV século, quando a questão da deidade de Jesus Cristo Nosso Senhor ainda estava sendo construída pelos bispos daquela que seria mais tarde conhecida como Igreja Católica Apostólica Romana.

Outro versículo que está caindo em desuso, à medida em que o conhecimento avança, é Jo. 8.58Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, eu sou.” Como já foi visto a reivindicação de semelhança com Ex. 3.14 é impróprio por não se tratar da mesma expressão se considerarmos as línguas originais da Bíblia, ficando, a formação da confusão por conta da opção do termo adotada pelos tradutores.

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1 Léxico do Novo Testamento Grego – Edições Vida Nova, pág. 149 . O Dicionário do Grego do Novo Testamento – Paulus Editora, pág. 338 traduz por que, o qual, a qual. Esse dicionário alista como tradução possível “quem” quando a partícula está em uma construção interrogativa.

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